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A polêmica da vitamina D

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2017-06-20 13:00:08

 

O analista de sistemas Ricardo Marques dos Santos, de 35 anos, consultou 22 médicos até ser diagnosticado com esclerose múltipla. O distúrbio, marcado pelo ataque das próprias células de defesa ao sistema nervoso, já tinha deixado o mineiro de Belo Horizonte com parte dos movimentos bastante comprometida. “Não conseguia receber uma visita no portão de casa. Não podia dirigir nem ir ao banco ou cortar o cabelo”, recorda-se. Mas o diagnóstico não foi o fim do martírio. Santos começou a terapia tradicional para deter o avanço da doença com drogas imunossupressoras. A tática funcionou, mas cobrou um preço: fraqueza, baixa na imunidade e gripes de repetição. “Será que o resto da minha vida será assim?”, angustiava-se Santos.

Até que o mineiro soube de um tratamento experimental, à base de superdoses de vitamina D, prescrito pelo neurologista gaúcho Cícero Galli Coimbra, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Santos marcou uma avaliação com um dos médicos da equipe de Coimbra em 2013. E saiu do consultório com uma receita para tomar uma dose diária de 60 mil UI (unidades internacionais) de vitamina D, ao custo de 150 reais mensais, o que corresponde a 1% do valor da terapia convencional. Só isso.

Passados os primeiros dias de uso, o analista já sentia recuperar os movimentos. Três meses depois, seu próprio neurologista notou a diferença em uma consulta de retorno. “Ele percebeu a melhora e ficou curioso. Era contra o tratamento com a vitamina D, mas hoje respeita minha decisão”, conta.

A história de Santos não é um caso isolado. Como ele, centenas de pacientes com esclerose múltipla e outras doenças autoimunes com sintomas parecidos estão recorrendo à vitamina D em forma de gotas e cápsulas. Acontece que esse uso divide (e muito) opiniões. O motivo da discórdia, que faz boa parte dos médicos torcer o nariz para as megadoses, é a falta de evidências científicas de que elas são seguras e eficientes. A carga de vitamina D receitada chega a superar em 35 vezes o limite estipulado pelas entidades médicas de todo o mundo. “Não podemos indicar um tratamento que não sabemos se funciona”, argumenta o neurologista Jefferson Becker, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Especialistas reconhecem que a deficiência de vitamina D é uma questão de saúde pública, associada a problemas como osteoporose, raquitismo e, inclusive, doenças autoimunes. No entanto, não há provas categóricas de que um bombardeio com a substância estanque distúrbios como a esclerose múltipla. A falta de evidências, porém, não significa que elas não existam. E, de fato, o relato dos beneficiários da vitamina impressiona. “Atingi 100% de sucesso em 95% dos pacientes. É só felicidade para nós e para eles”, comemora Coimbra, que não prescreve nenhuma outra medicação em conjunto com a megadose.

Apesar do sucesso relatado por Coimbra, seu método angaria uma porção de críticas. Um dos motivos apontados pela oposição é o fato de excluir do tratamento fármacos reconhecidamente efetivos. Outro é o risco do excesso de vitamina D, que pode ser tóxico, sobrecarregar as artérias e os rins e elevar a deposição de cálcio no organismo.

Para driblar esses efeitos adversos, o neurologista orienta uma dieta com muita água e restrições na ingestão do mineral. Sim, a controvérsia em torno é grande. E acaba de esquentar com a divulgação de um novo estudo, publicado no periódico da Academia Americana de Neurologia, que dá parecer favorável ao uso da vitamina D no tratamento da esclerose múltipla.

Cientistas das universidades Johns Hopkins, Duke e Stanford, nos Estados Unidos, avaliaram o efeito de duas dosagens diárias em 40 portadores da doença. Um grupo recebeu 800 UI e o segundo, 10 400 UI. Após seis meses, ambos apresentaram uma redução sensível nos sintomas. Só que, na parcela agraciada com a megadose, observou-se também uma queda no estado inflamatório sem comprometimento das defesas, indício de que a superdose é segura e, possivelmente, eficaz. Ou seja, ela parece ter conseguido modular o sistema imune para que ele deixe de agredir as estruturas nervosas.

Já é consenso que a carência do hormônio (sim, no corpo a vitamina D atua como hormônio) é mais frequente em pessoas com esclerose múltipla. Levantamentos mostram inclusive que as regiões mais frias e distantes da linha do Equador — isto é, menos ensolaradas — possuem maior prevalência do problema. Becker esclarece, porém, que baixos níveis de vitamina D não são o único fator por trás da condição. Portanto, não adiantaria só resolver o déficit para brecar a doença.

“Nenhuma diretriz no mundo recomenda ou sequer sugere o uso de megadoses de vitamina D em conjunto com outras medicações ou como tratamento isolado”, ressalta a neurologista Maramélia Miranda, também da Unifesp. Para o médico João Lindolfo, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, ainda faltam estudos comparativos. “Não se sabe quanto o resultado é real e quanto é um efeito placebo”, opina.

Mas Coimbra, que prescreve a vitamina desde 2002, refuta as acusações de que não há pesquisas suficientes. “São mais de 25 mil artigos sobre o assunto. Não existe vitamina com mais publicações na literatura médica”, defende. Estudos trazem, de fato, dados de suporte a essa terapêutica desde 1980 — ela conseguiria conter o número e a gravidade das crises na esclerose múltipla. Trabalhos mais recentes chegam a sugerir que a reposição da substância auxilia a brecar o avanço da doença, reforçando a hipótese de que seu déficit é um dos elementos centrais, junto à carga genética, no desenvolvimento da enfermidade. Especialistas afirmam, contudo, que falta robustez a esse corpo de evidências. Acima disso, Coimbra não revela dados de seu grupo de pacientes, tampouco publica pesquisas com eles.

Coimbra conta que o nosso organismo produz até 20 mil UI de vitamina D quando exposto ao sol, quantidade considerada por ele segura de ser administrada na forma de gotas ou cápsulas. “A natureza é perfeita. Não há uma única célula do corpo humano, da raiz do cabelo à unha do pé, que não tenha receptor para a vitamina D”, ensina. Mas por que o neurologista receita hoje doses mais elevadas do que as 20 mil UI? Ele explica que percebeu, ao longo dos anos, que parte dos pacientes sofre de uma espécie de resistência à ação do hormônio. Hoje, Coimbra aplica um teste genético que mede essa resistência e ajusta a carga da suplementação até aparecerem as melhoras.

Médicos incrédulos quanto aos benefícios referidos por Coimbra questionam por que ele não realizou até o momento pesquisas com seus pacientes. “Eu já tentei muitas vezes. Já tive verba aprovada para estudo, mas a instituição recuou”, relata. Um dos motivos da negativa, segundo ele, seria a pressão exercida pela indústria farmacêutica, que fatura milhões com a venda de remédios para esclerose múltipla, muitos bancados pelo SUS.

Como a vitamina D é um hormônio fabricado pelo corpo, ela não é passível de ser patenteada. Daí que laboratórios não veriam vantagens em bancar os testes – ora, não haveria retorno financeiro. Questionada sobre essa suposta falta de interesse, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, a Interfarma, diz que as “pesquisas são decisões estratégicas de cada farmacêutica”.

O fato é que, nos últimos anos, assistimos a um avanço terapêutico tremendo na luta contra a esclerose múltipla. Medicamentos como o fingolimode, a teriflunomida e o dimetilfumarato foram bem nos ensaios clínicos e já permitem um combate mais inteligente à doença. No entanto, o acesso no Brasil ainda é limitado. “Apenas o fingolimode é oferecido pelo SUS, e, mesmo assim, com restrições de uso para casos iniciais”, nota Maramélia Miranda. Outra barreira é o alto custo, o que torna o tratamento dependente do financiamento pelo goveno ou planos de saúde. Não é tão raro também que pacientes relatem efeitos colaterais e abandonem a medicação – isso, aliás, explica parte do apelo da vitamina D.

Maramélia, assim como outros especialistas, não vê problemas em aliar a suplementação comum ao tratamento tradicional. “De fato, estudos já demonstraram que aumentar os níveis de vitamina D no sangue de portadores da doença traz benefícios”, diz. Repare: não se fala aqui em megadoses, muito menos em sua aplicação isolada. No momento, a Sociedade Nacional de Esclerose Múltipla dos EUA financia três estudos com o hormônio. Um deles, conduzido pela Johns Hopkins, quer comparar a superdosagem com a terapia-padrão – no caso, um fármaco imunomodulador, o acetato de glatirâmero. Outra pesquisa, essa de Harvard, inspeciona em amostras de sangue de 1,6 mil pessoas com alto risco para o distúrbio qual seria o real impacto do déficit da vitamina D e de outros fatores, como infecções e tabagismo.

A substância, aliás, vem prestando serviço em outras doenças autoimunes, como lúpus, psoríase, vitiligo, síndrome de Devic (uma “prima” da esclerose) e tireoidite de Hashimoto, mal por trás do hipotireoidismo. Até mesmo alguns tipos de câncer e o diabete estão na mira da molécula, que teria outras funções metabólicas além de reger a imunidade. Um estudo espanhol com 150 voluntários revelou, no ano passado, que baixos índices do hormônio favorecem o aparecimento do diabete tipo 2, mesmo quando outras condições tipicamente associadas ao desbalanço da glicemia, como obesidade, não estão em jogo. “A vitamina D parece estar mais ligada ao aproveitamento da glicose do que o peso em si”, declarou o líder do trabalho, Manuel Macias-Gonzalez, no anúncio dos resultados. As promessas são vastas. E as controvérsias também. Que a ciência nos traga respostas mais conclusivas – pelo bem dos próprios pacientes.

O que dizem a favor

A vitamina D ajuda a orquestrar a imunidade, cortando processos inflamatórios crônicos, típicos de doenças autoimunes. No caso da esclerose múltipla, os danos acometem as bainhas de mielina, que revestem a cauda dos neurônios. Casos clínicos e relatos de pacientes atestam melhora dos sintomas e da qualidade de vida com o uso de superdoses.

O que dizem contra

Faltam estudos em seres humanos com metodologia rígida e número considerável de participantes que permitam concluir que as megadoses de vitamina D, especialmente em seu uso isolado, combatem com eficácia e de maneira sustentada a esclerose múltipla e outros males autoimunes. O excesso dos suplementos, aliás, pode ser tóxico ao corpo.

Como ela é obtida?

Naturalmente obtida com a exposição solar, a vitamina D pode ser indicada na forma de suplementos – e em diferentes doses

Exposição solar

O sol é o principal estímulo para a produção da vitamina pelo corpo. Vinte minutos de roupa de banho e sem protetor geram até 20 mil UI.

Pescados

A alimentação fornece uma cota, ainda que pequena, da substância. Entre as fontes, destacam-se peixes como salmão e sardinha.

Lácteos

No cardápio, leite e derivados também dão uma forcinha — hoje você encontra no mercado produtos fortificados com a vitamina D.

Em gotas

Suplemento oleoso, manipulado ou vendido pronto em farmácia. Cada gota tem 200 UI de vitamina D. É indicada contra a deficiência e na prevenção de osteoporose.

Em cápsulas

Cada uma delas contém 200 UI da substância e os usos são similares ao da versão em gotas. Pessoas mais velhas tendem a tomar mais devido à dificuldade do corpo de produzir a vitamina.

A superdose

É administrada em gotas ou cápsulas, a partir de 10 mil UI por dia, e tem sido receitada para doenças mais graves. Exige acompanhamento criterioso do médico e dieta restrita em cálcio.

As indicações

Usos estabelecidos

A suplementação é receitada para combater doenças ósseas como raquitismo e osteoporose. Pessoas que fizeram cirurgia de redução de estômago têm de tomar para evitar perdas nutricionais. Sem ela, apenas 15% da nossa ingestão de cálcio pela dieta e 60% do fósforo são absorvidos.

Usos em estudo

É de perder a conta o número de pesquisas que testam o potencial terapêutico da suplementação. Doenças autoimunes como esclerose múltipla e lúpus são alguns dos alvos. Pacientes com câncer e diabete também estão entre os possíveis beneficiários.

A vitamina D e a imunidade

O papel da substância no organismo desde a sua produção até a regulação das defesas

  1. A vitamina D é fabricada pelo corpo com a exposição ao sol. Em contato com a pele, os raios UVB ativam uma forma de pré-vitamina D.
  2. A molécula cai na corrente sanguínea e alcança o fígado, onde é transformada, então, em calcifediol.
  3. A substância passa ainda pelos rins, onde ganha sua forma ativa, ou colecalciferol – esta é a versão fornecida pelos suplementos em gotas ou cápsulas.
  4. Atuando como hormônio, a vitamina D participa da absorção de cálcio no intestino e auxilia a regular sua concentração, algo crucial para os ossos.
  5. A molécula ainda modula células imunológicas, caso dos linfócitos. Isso ajuda a prevenir infecções e minimizar inflamações, como as das doenças autoimunes.