2019-01-04 12:00:08
Nos casos mais graves, transtorno pode levar a insuficiência cardíaca, amputação de membros e até morte.
“Tenho a minha vida e tenho meus pés. São duas das coisas mais importantes para mim, considerando o dano que eu poderia ter causado a mim mesma”.
Becky Rudkin, de 30 anos, tem diabulimia — termo usado para descrever pessoas com diabete tipo 1 que tomam deliberadamente menos insulina que o necessário com o objetivo de perder peso.
A diabetes tipo 1 — doença autoimune, que costuma ser diagnosticada na infância — ocorre quando o pâncreas não produz insulina suficiente. Seu tratamento prevê a aplicação de injeções diárias do hormônio, responsável por controlar a glicose no sangue e fornecer energia ao organismo.
A diabulimia não é reconhecida oficialmente pela comunidade médica, mas uma verba de 1,2 milhão de libras (cerca de R$ 5,7 milhões) acaba de ser concedida para o financiamento de uma pesquisa sobre o tema na Grã-Bretanha.
A expectativa é que os cientistas consigam elaborar um programa de tratamento eficaz para pessoas que sofrem com o transtorno.
Becky, que é de Aberdeen, na Escócia, participou do documentário da BBC Diabulimia: The World’s Most Dangerous Eating Disorder (“Diabulimia: o Transtorno Alimentar Mais Perigoso do Mundo”, em tradução livre), produzido em 2017.
Na época, ela revelou que, por não estar tomando insulina suficiente, os ossos dos seus pés começaram a se desintegrar no que os médicos descreveram como “favo de mel e papa”. Eles estavam tão frágeis que quebravam com frequência.
“O dano no nervo é tão sério que eu nem sinto — só consigo ver o quão inchados estão”, relatou na ocasião.
Becky precisou usar muletas por causa do problema nos pés e passou três anos entrando e saindo de uma clínica de distúrbios alimentares.
A diabulimia é considerada mais perigosa do que a anorexia e a bulimia. Nos casos mais graves, pode levar à insuficiência cardíaca, à amputação de membros e até à morte.
“As pessoas com diabetes tipo 1 (que sofrem com o distúrbio) têm medo que a insulina leve ao ganho de peso. Esse medo é tão forte que faz com que omitam a dose de insulina que precisam tomar com o objetivo de perder peso”, explicou Khalida Ismail, professora do King’s College London, especializada em diabetes e saúde mental, ao documentário da BBC.
“Se um paciente com diabetes tipo 1 não tomar insulina, ele vai morrer muito rápido”, completou.
Diário da diabulimia
Em 2016, a BBC News Brasil relatou o caso da britânica Lisa Day, que morreu em 2015, aos 27 anos, após sofrer por anos de diabulimia.
Ela tinha sido diagnosticada com diabetes tipo 1 aos 14 anos de idade. Por isso, precisava de injeções diárias de insulina e tinha de cuidar da dieta. Mas ela tomava quantidades bem abaixo de insulina do que deveria. Os efeitos do descompasso no uso da medicação foram devastadores: emagreceu, teve problemas nos rins e nos olhos. Com a saúde debilitada, sofreu um infarto fatal.
Katie Edwards, a irmã mais velha de Lisa, cedeu à BBC trechos do diário escrito pela caçula, para alertar a respeito desse distúrbio pouco conhecido.
Lisa começou a escrever o diário pouco depois de ser diagnosticada com diabetes, em setembro de 2001.
Os relatos revelam um perfil típico de uma jovem com anorexia, mas que também tem de lidar com o diabetes:
“15 de março de 2002
Me sinto tão gorda. Me odeio. Amanhã começo a trabalhar em um petshop. Há uma discoteca no FC amanhã. Vou com Holly.
18 de março de 2002
Tive uma ‘hipo’ (hipoglicemia) terrível na hora do almoço. Estava sentada com Mike e sua namorada. Não acho que ele ache que eu estou em boa forma.”
A ciência por trás da diabulimia
A ciência básica por trás da diabulimia é que, sem insulina para processar a glicose, o corpo não pode quebrar os açúcares dos alimentos para obter energia. Em vez disso, as células do corpo começam a quebrar a gordura já armazenada no organismo, liberando o excesso de açúcar pela urina. Na ausência de gordura, o corpo começar a queimar músculo.
Um ano depois do documentário, Becky contou ao programa Newsbeat, da Radio 1 da BBC, que “as coisas meio que melhoraram” para ela.
Ela não precisa mais usar muletas, tampouco consultar a equipe de acompanhamento de saúde mental. E diz que está animada com os planos para o futuro:
“Estou noiva e vou me casar. Meu companheiro foi morar comigo e temos uma cachorrinha.”
“Ela é meu bebê agora e isso tem me ajudado muito. Animais de estimação têm esse poder, ela me dá muito carinho”, contou.
O financiamento para a pesquisa sobre diabulimia foi obtido pela cientista clínica Marietta Stadler, que trabalha no King’s College Hospital, em Londres.
Ela e sua equipe vão usar a verba para tentar entender melhor a condição. Para isso, vão entrevistar pessoas que apresentam o transtorno.
“Você não pode ter um bando de médicos decidindo sobre uma intervenção, as pessoas que vivem com a condição precisam estar envolvidas”, diz ela.
A pesquisa deve levar cinco anos, e o plano atual é criar um programa de tratamento de 12 módulos — uma sessão quinzenal por seis meses — para pacientes com diabulimia.
Ao saber da pesquisa, Becky diz que “já não era sem tempo, porque o diabetes é negligenciado”. Mas ela também manifesta algumas preocupações.
“Todo mundo é diferente e cada um de nós trata a diabulimia e diabetes de formas completamente distintas. Então eu suponho que é onde poderia pegar um pouco.”
“O que você pode fazer em 12 sessões com alguém que tem diabulimia? Você não vai a fundo em um encontro quinzenal, não sei se é suficiente”, completa.
O financiamento foi concedido pelo Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde (NIHR, na sigla em inglês), que oferece verba para projetos de pesquisa que dizem ter “um claro benefício para os pacientes e para o público”.
“Tudo o que financiamos deve ter um efeito real e útil para o NHS (sistema público de saúde do Reino Unido), e a pesquisa de Marietta foi um grande exemplo disso.”
Marietta Stadler afirma, por sua vez, que a pesquisa é apenas o “primeiro passo”. Segundo ela, após os cinco anos de financiamento, seria necessário um estudo maior antes de qualquer programa oficial de tratamento ser adotado pelo NHS.
“Como todo mundo, quem é diagnosticado com diabetes tipo 1 não tem apenas necessidades de saúde física, também tem necessidades de saúde mental”, disse um porta-voz do governo.
A ONG Diabéticos com Transtornos Alimentares (DWED na sigla em inglês) estima que 40% das mulheres com diabetes tipo 1 admitem ter negligenciado a administração de insulina para perder peso.