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Aposta contra a depressão persistente

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2019-01-30 12:00:08

 

Estudos sugerem que doses baixas de anestésico de ação psicodélica podem ser benéficas a pessoas que não respondem aos medicamentos convencionais.

 

Em setembro de 2018, a empresa farmacêutica Janssen apresentou à agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos um pedido de registro de uso novo para uma medicação antiga. O laboratório, parte da empresa norte-americana Johnson&Johnson, solicitou à Food and Drug Administration (FDA) que o anestésico cetamina, sintetizado nos anos 1960, possa ser usado contra a depressão que não cede aos antidepressivos, chamada de refratária ao tratamento. Nos últimos 20 anos, um número crescente de estudos, a maior parte feita com poucas pessoas e de curta duração, sugere que, em doses baixas, a cetamina tem ação antidepressiva potente e rápida.

Uma única dose, injetada no músculo ou na corrente sanguínea, seria capaz de reduzir de modo significativo e relativamente duradouro (cerca de uma semana) a tristeza, a desesperança, a falta de motivação, a baixa autoestima e até os pensamentos suicidas que podem acompanhar a depressão severa. “Em doses de 10 a 20 vezes inferiores às usadas na anestesia, é um medicamento que ajuda a tirar a pessoa do fundo do poço”, afirma o psiquiatra Acioly Lacerda, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos pioneiros no uso experimental da cetamina contra a depressão no Brasil.

Um dos problemas de saúde mental mais frequentes no mundo, a depressão atinge 300 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde. Um desafio é que até metade das pessoas tratadas não melhora com os antidepressivos disponíveis. De olho nesse mercado, a Janssen desenvolveu uma versão da cetamina de uso mais simples para pessoas com depressão: um spray nasal que deverá ser administrado sob supervisão médica.

Caso seja aprovado pela FDA, o spray de cetamina deve se tornar o primeiro composto da classe dos psicodélicos, que alteram a percepção da realidade, a ser adotado no tratamento de doenças psiquiátricas com respaldo de uma autoridade sanitária. Recentemente, tem crescido o interesse de profissionais de saúde mental no uso terapêutico de psicodélicos, muitos em estágio mais inicial de testes (ver reportagem).

O produto da Janssen está na fase mais avançada de avaliação em seres humanos: os ensaios clínicos de fase 3, que medem a eficácia do produto, última etapa antes da liberação para comercialização. Em maio, o grupo coordenado pela psiquiatra Carla Canuso, diretora de desenvolvimento clínico da Johnson&Johnson, publicou um artigo on-line no American Journal of Psychiatry em que mostra os resultados de uma etapa anterior, os ensaios de fase 2. Realizado com pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, o estudo avaliou a segurança e deu indícios da possível eficácia do spray. Nele, 68 pessoas com depressão refratária e risco iminente de suicídio foram aleatoriamente indicadas para receber duas doses semanais de cetamina intranasal por quatro semanas ou de um composto inócuo (placebo). Os dois grupos também foram tratados com um antidepressivo convencional. Segundo o trabalho, quem recebeu cetamina melhorou mais rápido, até o 11º dia dos testes, do que o grupo placebo.

Resultados preliminares de dois ensaios clínicos de fase 3, dos quais participam centenas de pessoas em 60 clínicas e hospitais de diversos países, inclusive do Brasil, foram apresentados em maio no encontro anual da Associação Americana de Psiquiatria e reforçam os achados anteriores. “Se a resposta da cetamina intranasal continuar superior à do placebo nos estudos que estão terminando, a aprovação da FDA pode vir em até um ano”, diz o psiquiatra Lucas Quarantini, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que, como Lacerda, participa dos testes do medicamento da Janssen.

 

A aprovação da droga para uso psiquiátrico está sendo analisada pelas autoridades de saúde.

 

Uso off-label

Mesmo sem aprovação das autoridades de saúde, já ocorre nos Estados Unidos, e mais recentemente no Reino Unido e no Brasil, a prescrição de cetamina injetável contra a depressão refratária. Nesses países o composto está registrado apenas como anestésico. Seu uso psiquiátrico não consta da bula e é considerado excepcional ou off-label (prática comum que, segundo alguns estudos, ocorre com até 40% dos medicamentos prescritos para adultos). Por essa razão, a indicação da cetamina injetável contra a depressão ocorre por conta e risco do médico, que só deve recomendá-la se os benefícios para o paciente superarem os riscos – de problemas cardiovasculares (em parte das pessoas, eleva temporariamente a pressão arterial) e de dependência. “O uso off-label é de responsabilidade de cada profissional”, informou a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula a venda de medicamentos no Brasil.

No país, a única empresa produtora de cetamina, o laboratório Cristália, entrou há cerca de oito meses com um pedido na Anvisa para que o tratamento da depressão passe a constar em bula. “Reunimos os estudos mostrando a segurança e eficácia do produto contra a depressão e estamos aguardando”, conta o médico Ogari Pacheco, cofundador do Cristália. A aprovação pela autoridade sanitária daria respaldo aos médicos, que correm o risco de sofrer ações judiciais. Também representaria um passo inicial para que se torne possível pedir ao Ministério da Saúde a inclusão da cetamina, um medicamento barato (a dose custa entre R$ 5 e R$ 10), na lista de medicamentos e procedimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelos planos de saúde.

Hoje, clínicas e hospitais públicos que tratam depressão com cetamina dependem do setor de anestesiologia para fazer a compra. Na iniciativa privada, é preciso ter alvará para a aplicação de medicamentos injetáveis, além de equipamentos para monitoração cardiorrespiratória e ressuscitação. Nesses locais, cada aplicação sai por R$ 600 a R$ 1.200, por causa da infraestrutura exigida e do custo da hora das equipes médica e de enfermagem.

Lacerda calcula que cerca de 20 clínicas e hospitais brasileiros (ao menos seis ligados a universidades públicas) já ofereçam o tratamento com cetamina para a depressão. Na Unifesp, ele coordena uma equipe que atua em dois ambulatórios que funcionam todas as manhãs de segunda a sexta-feira e atendem apenas pacientes do SUS. Nas duas unidades, 10 pessoas são tratadas com cetamina por dia. “Em quatro anos, esse consórcio de clínicas e hospitais já realizou cerca de 6 mil aplicações de cetamina em aproximadamente 1.200 pacientes”, conta. “Entre 60% e 65% deles apresentaram melhora considerável”, afirma o pesquisador.

Há cerca de cinco anos Quarantini e Lacerda trabalham em parceria. Eles já testaram em 27 pacientes (23 com depressão e 4 com transtorno bipolar) a aplicação de cetamina em menos tempo, apenas 10 minutos, e obtiveram resultados semelhantes ao da administração usual, em 40 minutos. No ano passado, relataram na revista Schizophrenia Research o tratamento experimental de seis pessoas com esquizofrenia. Doses baixas de cetamina reduziram nesses pacientes a perda de prazer (anedonia) característica tanto da depressão quanto da esquizofrenia. Em outro estudo, eles avaliaram em 63 pessoas com depressão as duas variedades de cetamina existentes no mercado: a S-cetamina ou escetamina, usada no spray da Janssen e, no Brasil, fabricada pelo laboratório Cristália, e a cetamina usada em anestesia, conhecida como racêmica, uma mistura da S-cetamina e da R-cetamina (elas têm estrutura espacial diferente). Segundo os dados, já aceitos para publicação, a S-cetamina funcionou tão bem quanto a racêmica.

“Há razão para ser otimista com o impacto da cetamina sobre a sobrecarga que a depressão gera na saúde pública”, afirmou o psiquiatra norte-americano John Krystal, professor da Universidade Yale, em entrevista a Pesquisa FAPESP. “Nunca houve um medicamento que agisse de maneira tão rápida, eficiente e persistente.”

Krystal foi um dos pioneiros no uso da cetamina para tratar problemas psiquiátricos e hoje detém uma parte das patentes licenciadas pela Janssen para administração intranasal e seu uso para tratar impulsos suicidas. Em meados dos anos 1990, ele começou a investigar o efeito de doses baixas do anestésico sobre o humor das pessoas e, em 2000, publicou a primeira evidência de que a cetamina produzia um efeito antidepressivo rápido em humanos. Em um estudo com apenas oito pessoas, metade apresentou redução superior a 50% nos sintomas depressivos em um dia após uma única aplicação. “Não havíamos antecipado a robustez e a rapidez dos efeitos antidepressivos da cetamina em humanos”, conta Krystal.

 

Faltam dados de longo prazo

Estudos posteriores, como os de Carlos Zarate, do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, registraram a melhora de uma proporção maior (71%) de pessoas com quadro depressivo já na primeira hora após a administração e resultados semelhantes no tratamento do transtorno bipolar. Outros trabalhos sugeriram que a cetamina proporcionaria uma redução mais rápida e maior do quadro depressivo do que a eletroconvulsoterapia (eletrochoque), o padrão-ouro no tratamento da depressão refratária a medicamentos, e que, nas semanas iniciais, seria mais eficaz do que os outros 12 medicamentos.

Apesar do otimismo, há motivos para cautela. Em 2017, pesquisadores de uma força-tarefa da Associação Psiquiátrica Americana publicaram um artigo na revista JAMA Psychiatry alertando para as limitações no conhecimento sobre o uso do medicamento contra a depressão e outros transtornos do humor. A maior parte dos estudos se baseia em amostras pequenas e com informações limitadas sobre a segurança do uso prolongado, afirmaram. Também faltam dados da eficácia no tratamento de longa duração e não existem ensaios clínicos de fase 3 com a cetamina injetável. Segundo os autores, esses ensaios talvez nunca sejam realizados por questões econômicas (são caros e pode não haver interesse da indústria em produzir uma medicação tão barata). Por essa razão, recomendam aos médicos a seleção criteriosa dos pacientes.

Outros estudos, também pequenos e às vezes financiados pela indústria farmacêutica, avaliaram as doses mais adequadas, estratégias para prolongar o efeito benéfico aumentando o número de aplicações (entre 5 e 8) por ciclo de tratamento e melhor via de administração. A aplicação endovenosa, que permite interromper a administração no caso de problemas, é a preferida das clínicas de cetamina, que proliferam nos Estados Unidos e, segundo reportagem de setembro de 2018 da revista eletrônica Stat, podem estar administrando o medicamento até para quem não precisa.

Na Unifesp, Lacerda aposta nas injeções subcutâneas. Nessa estratégia, o medicamento fica armazenado no tecido adiposo e é liberado aos poucos na corrente sanguínea, reduzindo os efeitos desagradáveis – os mais frequentes são enjoo e dissociação, percepção alterada do ambiente sem perder a noção da realidade. A aplicação subcutânea dispensa o anestesista e pode ser feita por um auxiliar de enfermagem e um médico. “Essa é uma estratégia que, além de segura, é financeiramente mais viável para um dia chegar ao SUS”, afirma o psiquiatra.

Caso a FDA aprove o medicamento da Janssen, sua venda, assim como a do composto injetável, será restrita a clínicas e hospitais, para evitar o risco de abuso e dependência. Por seus efeitos alucinógenos, como sentir-se fora do corpo ou ver pessoas e objetos ao redor mais brilhantes, a cetamina foi muito usada nos Estados Unidos e em outros países como droga recreativa a partir de fins dos anos 1960. Era conhecida como K (do inglês ketamine), superK, Kitty, Vitamin K, Cat Valium, entre outros apelidos. Seus usuários aplicam a forma líquida no músculo ou aspiram o pó da versão liofilizada, de uso veterinário. “Quem faz uso abusivo consome doses bem mais elevadas que as anestésicas e até 40 vezes maior que a usada contra a depressão”, conta Lacerda.