2019-02-04 11:30:08
Entenda por que a chamada saúde digital pode fazer alguém pagar mais caro por um seguro de vida ou entregar resultado oposto ao que promete.
Saúde digital é um grande negócio.
Trata-se de usar a tecnologia para ajudar na prestação de serviços de saúde, incluindo o uso de aplicativos, dispositivos e microchips implantados.
A expectativa é que este mercado atinja a cifra de US$ 379 bilhões (cerca de R$ 1,4 trilhão) em todo o mundo até 2024, ante os US$ 71,4 bilhões (R$ 274 bilhões) movimentados em 2017, segundo a consultoria Global Market Insights.
Mas essa expansão alimenta preocupações de que a mesma tecnologia que promete melhorar a vida dos usuários também possa ser usada contra eles.
Estima-se que mais de 200 mil aplicativos de saúde para dispositivos móveis estejam disponíveis no Google Play e na Apple Store.
“Por meio de sensores, dispositivos de rastreamento e outras ferramentas de coleta de dados, temos a capacidade de identificar tendências, anomalias ou outros fatores ambientais ou físicos que podem afetar a forma como tratamos doenças e, então, melhorar a vida das pessoas”, diz John Bardi, vice-presidente de desenvolvimento de negócios em medicina digital da empresa farmacêutica Otsuka.
“Mas com essa promessa vem uma enorme responsabilidade.”
As questões vão de ética a segurança de dados. Entenda como esses aplicativos de saúde poderiam acabar trabalhando “contra” você.
1. Você pode acabar pagando mais pelo seguro de vida
Em setembro de 2018, John Hancock, uma das maiores e mais antigas companhias de seguros da América do Norte, levantou uma polêmica.
A empresa anunciou uma mudança em suas políticas “interativas” – aquelas que rastreiam dados de saúde e hábitos esportivos de seus clientes por meio de dispositivos portáteis e smartphones.
Em seguida, eles passaram a recompensar com descontos e recompensas os clientes que adotam estilos de vida mais saudáveis, baseando-se em estatísticas que mostram que os que aderiam a apólices interativas viviam de 13 a 21 anos mais do que outros segurados.
Mas especialistas em seguros dizem que a decisão pode levar seguradoras a usarem os dados de rastreamento para punir clientes que não cumprirem as metas – incluindo a cobrança de preços mais altos de pessoas que optam por não adotar apólices interativas.
“Naturalmente, o estado de vigilância distópico americano combinará com essa modalidade de seguro. Bem-vindo ao inferno”, disse Matt Stoller, do Instituto de Mercados Abertos, em entrevista à BBC em setembro.
A John Hancock argumenta, contudo, que a modalidade de apólices interativas foi impulsionada pela demanda dos próprios clientes – o uso do rastreamento de dados de saúde aumentou mais de 700% nos últimos três anos, de acordo com a empresa.
“Durante séculos, o modelo de seguro forneceu principalmente proteção financeira para as famílias após a morte, sem aumentar a qualidade de vida”, disse Marianne Harrison, presidente e CEO da John Hancock, em comunicado.
“Acreditamos fundamentalmente que as seguradoras de vida devem se preocupar com o tempo e em quão bem seus clientes vivem. Com essa decisão, estamos orgulhosos de nos tornarmos a única companhia de seguro de vida dos EUA a adotar plenamente o bem-estar comportamental e deixar para trás o antigo modo de fazer negócios.”
2. Seu dispositivo pode estar espionando você
As máquinas de pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP, na sigla em inglês) são usadas por milhões de pessoas que têm problemas respiratórios, como a apneia do sono.
Elas são caras e nem sempre são fornecidas pelos sistemas públicos de saúde.
Em novembro, uma investigação da rádio americana NPR descobriu que algumas empresas de seguro de saúde estavam fornecendo dispositivos de CPAP interativos que enviavam dados de uso dos pacientes para que essas empresas pudessem, eventualmente, negar cobertura de equipamentos para usuários indisciplinados.
Mas o alemão especialista em dados Christian Bennefeld adverte que as empresas não precisam nem chegar a esse ponto para monitorar as pessoas.
Um estudo realizado por sua empresa, a eBlocker, encomendado por um jornal suíço, descobriu que os sites do setor de saúde já “espionam” a atividade de navegação dos clientes graças aos programas de rastreamento da internet.
Uma das empresas tinha 33 tipos diferentes de rastreadores.
“O problema aqui é que muitos usuários não sabem que esta informação está sendo monitorada, mesmo quando eles acessam um site médico em busca de conselhos ou fazem buscas por termos como câncer, por exemplo”, disse Bennefeld à BBC.
3. Você pode ficar tentado a se autodiagnosticar
Informações sobre sintomas e doenças estão disponíveis gratuitamente na internet há décadas.
Mas a chegada de uma tecnologia mais sofisticada disponibilizou uma gama de ferramentas que permite aos pacientes fazerem a varredura de si mesmos e mesmo testes genéticos sob demanda.
Até órgãos públicos, como o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês), criaram aplicativos com assistentes virtuais a fim de ajudar a filtrar consultas médicas em momentos de escassez de profissionais de saúde.
No entanto, um estudo de 2016 da Royal Pharmaceutical Society mostrou que mais da metade dos adultos britânicos usam a internet em vez de visitar um médico. Além disso, uma pesquisa realizada pela empresa Mintel descobriu no mesmo ano que um número crescente de pessoas mais jovens era mais propensa a confiar em informações online – de aplicativos de saúde a redes sociais até o “Dr. Google” – do que nos próprios médicos ou farmacêuticos.
Isso ocorre mesmo com as frequentes advertências das autoridades de saúde, como uma análise de 23 sites relacionados à saúde feita pelo British Medical Journal. A pesquisa descobriu que os sites davam um diagnóstico correto em apenas 34% dos casos.
4. Você pode ser hackeado
Uma grande preocupação em saúde digital é a enorme quantidade de dados coletados dos pacientes.
Eles são vulneráveis às mesmas violações de segurança que ocorreram com tanta frequência na última década?
Até agora, a lista das maiores violações de dados de todos os tempos não inclui empresas vinculadas ao setor de saúde.
Mas, no início deste ano, hackers invadiram o banco de dados de saúde do governo de Cingapura e coletaram dados pessoais de 1,5 milhão de pessoas – o equivalente a um quarto da população.
5. Você pode ser alvo (ou não) de um algoritmo tendencioso
Os entusiastas da medicina digital argumentam que a tecnologia pode levar ao desenvolvimento de cuidados de saúde cada vez mais personalizados.
Mas há preocupações de que ela também possa causar desconforto aos pacientes.
Tudo graças ao viés do algoritmo – que é quando um sistema de computador reflete os valores implícitos dos seres humanos envolvidos em seu sistema.
Diversos estudos sobre o uso de inteligência artificial destacam a necessidade de uma representação mais ampla em equipes de desenvolvedores e de dados.
O Nuffield Council on Bioethics, órgão independente do Reino Unido, examina e reporta questões éticas em biologia e medicina.
Ele diz que os benefícios da inteligência artificial nos cuidados de saúde podem ser distribuídos de modo desigual.
“A IA pode funcionar pior quando os dados são escassos ou mais difíceis de serem coletados. Isso pode afetar pessoas com condições médicas raras ou outras pessoas sub-representadas em pesquisas clínicas, como populações negras e asiáticas.”
6. Os apps podem não entregar o que prometem
Estudos sobre o sucesso de intervenções digitais em saúde produziram resultados mistos.
Um exemplo foi um documento da Virginia Commonwealth University, de 2017, relacionando a contagem de calorias e a tecnologia de rastreamento de condicionamento físico a transtornos alimentares.
Por outro lado, estudos no Reino Unido mostraram uma redução nas internações hospitalares e no tempo de permanência e visitas domiciliares entre os pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica.
No início deste ano, um estudo da Universidade de Bond, na Austrália, revelou que apenas 23 aplicativos de saúde e bem-estar foram estudados sob os mais altos padrões acadêmicos e que apenas um deles funciona – o GetHappy.
Em um caso, um aplicativo desenvolvido pelo governo sueco para reduzir o consumo de álcool entre estudantes universitários (Promillekoll) na verdade fez com que os estudantes do sexo masculino bebessem mais, conforme um estudo publicado pelo periódico Addiction Science and Clinical Practice.
7. Você pode conseguir o que não queria
Com mais de 700 mil usuários em 200 países, o Natural Cycles é um aplicativo que foi reconhecido como o primeiro “anticoncepcional digital” certificado do mundo. Ele usa um método livre de hormônios baseado em ciclos reprodutivos e foi aprovado pela Food and Drug Administration dos EUA.
Mas o aplicativo e a empresa estão no centro das atenções desde julho, quando começaram a aparecer casos de gravidez indesejada.
As autoridades de saúde suecas informaram em janeiro que 37 dos 668 abortos realizados em um hospital de Estocolmo eram de mulheres que usaram o aplicativo.
Em agosto, o órgão que regulamenta a publicidade no Reino Unido proibiu um anúncio da Natural Cycles no Facebook, alegando que ele exagerava ao falar sobre a eficácia do aplicativo.
“Nenhum método contraceptivo é 100% eficaz, e a gravidez indesejada é um risco com qualquer contracepção”, disse a empresa em comunicado em agosto.
A Natural Cycles garante que os ensaios clínicos mostraram que sua taxa de eficácia é de 93%, corroborada de forma independente pela Agência Sueca de Produtos Médicos, que autorizou o uso do aplicativo.
Mas a agência também pediu à Natural Cycles para “especificar o risco de gravidez indesejada nas instruções de uso e no aplicativo, para que os usuários possam levá-lo em conta”.
Também afirmou que “vai acompanhar os casos de gravidez indesejada e monitorar se não há desvio da quantidade esperada de acordo com a avaliação clínica”.
“Nós nos solidarizamos com todas as mulheres tiveram uma gravidez indesejada e entendemos que é uma situação difícil. No entanto, o número (de gestações registradas no hospital) coincide aproximadamente com o número de usuários que temos em Estocolmo, ou seja, 5%. Isso está de acordo com o que esperamos do aplicativo”, disse a diretora técnica da Natural Cycles, Elina Berglund, à BBC Radio 5.