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Os remédios que podem mudar quem você é

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2020-02-01 11:00:08

 

Eles estão ligados à raiva ao volante, vício em jogos de azar e cometimento de fraudes. Alguns nos tornam menos neuróticos, outros podem até moldar nossos relacionamentos. Acontece que muitos medicamentos comuns não afetam apenas nosso corpo — eles afetam nosso cérebro. Por quê?

 

O “Paciente Cinco” tinha quase 50 anos quando uma consulta médica mudou sua vida.

Ele tinha diabetes e se inscreveu em um estudo para ver se tomar estatina — um tipo de medicamento para baixar o colesterol — poderia ajudar. Até aí, tudo bem.

Mas logo depois que ele começou o tratamento, sua esposa começou a notar uma transformação sinistra. Antes um homem razoável, ele se tornou explosivamente nervoso e desenvolveu uma tendência a sentir muita raiva dirigindo.

Por medo do que poderia acontecer, o Paciente Cinco parou de dirigir. Mesmo como passageiro, suas explosões muitas vezes obrigavam sua esposa a interromper suas viagens e voltar para casa. Depois, ela o deixava assistindo TV para se acalmar. A mulher passou a ficar cada vez mais preocupada com sua próprua segurança.

Então, um dia, o Paciente Cinco teve uma epifania. “Ele pensou: ‘Parece que esses problemas começaram quando eu comecei a participar desse estudo'”, diz Beatrice Golomb, que lidera um grupo de pesquisa da Universidade da Califórnia em San Diego.

Alarmado, o casal voltou-se para os organizadores do estudo. “Eles foram muito hostis. Disseram que não tinha nada a ver, que ele precisava continuar tomando o medicamento e que deveria permanecer no estudo”, diz Golomb.

Ironicamente, a essa altura, o paciente estava em um estado tão impertinente que ignorou categoricamente os conselhos dos médicos. “Ele os xingou, saiu do escritório e parou de tomar o remédio imediatamente”, afirma ela. Duas semanas depois, voltou ao normal.

Outros não tiveram tanta sorte. Ao longo dos anos, Golomb coletou relatos de pacientes nos Estados Unidos — histórias de casamentos desfeitos, carreiras destruídas e um número surpreendente de homens que chegaram perto de assassinar suas esposas. Em quase todos os casos, os sintomas começaram com a estatina, e logo voltaram ao normal quando os pacientes pararam de tomar o remédio; um deles repetiu esse ciclo cinco vezes antes de perceber o que estava acontecendo.

Segundo Golomb, isso é típico — em sua experiência, a maioria dos pacientes tem dificuldade para reconhecer suas próprias mudanças comportamentais, e mais ainda para conectá-las aos seus medicamentos. Em alguns casos, a percepção chega tarde demais: o pesquisador foi contatado pelas famílias de várias pessoas, incluindo um cientista de renome internacional e um ex-editor de uma publicação legal, que tiraram a própria vida.

Todos conhecemos as propriedades alucinógenas das drogas psicodélicas — mas os medicamentos comuns podem ser igualmente potentes.

Do paracetamol a anti-histamínicos, estatinas, medicamentos para asma e antidepressivos, existem evidências de que eles podem nos tornar impulsivos, irritados ou inquietos, diminuir nossa empatia por estranhos e até manipular aspectos fundamentais de nossas personalidades (por exemplo, o quão neuróticos somos).

Na maioria das pessoas, essas mudanças são extremamente sutis. Mas, em algumas, podem ser dramáticas.

Em 2011, um homem francês processou a empresa farmacêutica GlaxoSmithKline, alegando que o medicamento que estava tomando para a doença de Parkinson havia feito ele se viciar em jogo e em sexo gay e era responsável por comportamentos de risco que o levaram a ser estuprado.

Em 2015, um homem que praticava pedofilia na internet usou o argumento de que o medicamento anti-obesidade Duromine o fez fazer isso — ele disse que reduziu sua capacidade de controlar seus impulsos. De vez em quando, os assassinos tentam culpar os sedativos ou antidepressivos por seus crimes.

Se essas afirmações são verdadeiras, as implicações são profundas. A lista de possíveis culpados inclui algumas das drogas mais consumidas no planeta, o que significa que, mesmo que os efeitos sejam pequenos em nível individual, eles podem estar moldando a personalidade de milhões de pessoas.

A pesquisa sobre esses efeitos não poderia estar em um momento melhor. O mundo está passando por uma crise de excesso de medicação, com os EUA comprando 49.000 toneladas de paracetamol por ano — o equivalente a cerca de 298 comprimidos de paracetamol por pessoa — e o americano médio consumindo US$ 1.200 (R$ 5.000) em medicamentos prescritos no mesmo período.

E à medida que a população global envelhece, nossa sede de drogas está prestes a ficar ainda mais fora de controle; no Reino Unido, uma em cada 10 pessoas com mais de 65 anos já toma oito medicamentos por semana.

Como todos esses medicamentos afetam nosso cérebro? E deve haver avisos nas embalagens?

Golomb suspeitou que havia uma conexão entre estatinas e mudanças de personalidade quase duas décadas atrás, depois de uma série de descobertas misteriosas, como a de que pessoas com níveis mais baixos de colesterol têm mais chances de ter mortes violentas. Conversando com um especialista em colesterol sobre o possível vínculo, ele disse que era absurdo. “E eu disse: ‘Como temos certeza disso?'”, diz ela.

Cheia de determinação, Golomb vasculhou a literatura científica e médica em busca de pistas. “Havia mais evidências do que eu imaginava”, diz. Ela descobriu, por exemplo, que, se você colocar primatas em uma dieta baixa em colesterol, eles se tornam mais agressivos.

Havia até um mecanismo potencial: diminuir o colesterol dos animais parecia afetar seus níveis de serotonina, um importante produto químico cerebral que, acredita-se, está envolvido na regulação do humor e do comportamento social dos animais. Até as moscas começam a brigar se você mexer com seus níveis de serotonina, mas isso também tem efeitos desagradáveis ​​nas pessoas — estudos associaram uma mudança nos níveis de serotonina a violência, impulsividade, suicídio e assassinato.

Se as estatinas estavam afetando o cérebro das pessoas, isso provavelmente seria uma consequência direta de sua capacidade de reduzir o colesterol.

Desde então, surgiram evidências mais diretas. Vários estudos sugeriram uma ligação potencial entre irritabilidade e estatinas, incluindo um estudo randomizado controlado — o padrão-ouro da pesquisa científica — liderado por Golomb, envolvendo mais de 1.000 pessoas. Ela descobriu que a droga aumentou a agressividade em mulheres na pós-menopausa, embora, estranhamente, não em homens.

Em 2018, um estudo descobriu o mesmo efeito em peixes. Dar estatinas à tilápia-do-nilo as tornou mais confrontadoras e alterou os níveis de serotonina em seus cérebros. Isso sugere que o mecanismo que liga o colesterol à violência já existe há milhões de anos.

Golomb continua convencida de que o colesterol mais baixo e, por extensão, as estatinas, podem causar mudanças comportamentais em homens e mulheres, embora a força do efeito varie drasticamente de pessoa para pessoa.

“Existem conjuntos de evidência convergindo”, diz, citando um estudo realizado na Suécia, que envolveu a comparação de um banco de dados dos níveis de colesterol de 250.000 pessoas com registros de crimes locais. “Mesmo eliminando fatores que causam confusão, o fato ainda era que pessoas com colesterol mais baixo tinham uma probabilidade significativamente maior de serem presas por crimes violentos”.

Mas a descoberta mais perturbadora de Golomb não é tanto o impacto que as drogas comuns podem ter sobre quem somos — é a falta de interesse em descobrir esse impacto.

“Há muito mais ênfase nas coisas que os médicos podem medir facilmente”, afirma, explicando que, por muito tempo, as pesquisas sobre os efeitos colaterais das estatinas foram todas focadas nos músculos e no fígado, porque qualquer problema nesses órgãos pode ser detectado usando exames de sangue padrão.

Isso é algo que Dominik Mischkowski, um pesquisador da dor na Universidade de Ohio, também notou. “Existe uma lacuna notável na pesquisa, na verdade, quando se trata dos efeitos dos medicamentos na personalidade e no comportamento”, diz. “Sabemos muito sobre os efeitos fisiológicos desses medicamentos. Mas não entendemos como eles influenciam o comportamento humano”.

A pesquisa de Mischkowski descobriu um efeito colateral surpreendente do paracetamol. Há muito tempo, os cientistas sabem que a droga reduz a dor física ao diminuir a atividade em certas áreas do cérebro, como o córtex insular, que desempenha um papel importante em nossas emoções. Essas áreas também estão envolvidas em nossa experiência de dor social — e, curiosamente, o paracetamol pode nos fazer sentir melhor após uma rejeição.

E pesquisas recentes revelaram que esse pedaço do cérebro está mais lotado do que se pensava, porque os centros de dor do cérebro também compartilham espaço com a empatia.

Por exemplo, imagens de ressonância magnética mostraram que as mesmas áreas do cérebro se tornam ativas quando sentimos “empatia positiva” — prazer em favor das outras pessoas — e quando sentimos dor.

Diante desses fatos, Mischkowski se perguntou se os analgésicos poderiam dificultar a experiência da empatia. No início deste ano, junto com colegas da Universidade de Ohio e da Universidade Estadual de Ohio, ele recrutou alguns estudantes e os dividiu em dois grupos. Um recebeu uma dose padrão de 1.000 mg de paracetamol, enquanto o outro recebeu um placebo. Depois, pediu que eles lessem cenários sobre experiências inspiradoras que aconteceram com outras pessoas, como a boa sorte de “Alex”, que finalmente teve coragem de convidar uma garota para um encontro (ela disse que sim).

Os resultados revelaram que o paracetamol reduz significativamente nossa capacidade de sentir empatia positiva — um resultado com implicações em como a droga está moldando as relações sociais de milhões de pessoas todos os dias. Embora o experimento não tenha olhado para a empatia negativa — onde sentimos e nos identificamos com a dor de outras pessoas — Mischkowski suspeita que ela também seria mais difícil de sentir depois de tomar o medicamento.

“Eu não sou mais um iniciante como pesquisador e, para ser honesto, essa linha de pesquisa é realmente a mais preocupante que já conduzi”, diz. “Especialmente porque estou ciente do número de pessoas envolvidas. Realmente não entendemos os efeitos desses medicamentos em um contexto mais amplo.”

A empatia não determina apenas se você é uma pessoa “legal” ou se chora enquanto assiste a filmes tristes. A emoção traz muitos benefícios práticos, incluindo relacionamentos românticos mais estáveis, filhos mais bem ajustados e carreiras mais bem-sucedidas — alguns cientistas até sugeriram que ela é responsável pelo triunfo de nossa espécie. De fato, diminuir casualmente a capacidade de empatia de uma pessoa não é uma questão trivial.

Tecnicamente, o paracetamol não está mudando nossa personalidade, porque os efeitos duram apenas algumas horas e poucos de nós o tomam continuamente. Mas Mischkowski enfatiza que precisamos ser informados sobre as maneiras como isso nos afeta, para que possamos usar nosso bom senso. “Assim como devemos estar cientes de que você não deve dirigir se estiver sob a influência de álcool, você não devia tomar paracetamol e se colocar em uma situação que exige que você seja emocionalmente sensível — como ter uma conversa séria com um parceiro ou colega de trabalho.”

Uma das razões pelas quais os medicamentos podem ter essa influência psicológica é que o corpo não é apenas um saco de órgãos separados, inundado de produtos químicos com funções bem definidas. Ele é uma rede com muitos processos diferentes e conectados.

Por exemplo, os cientistas sabem há algum tempo que os medicamentos usados para tratar a asma estão, às vezes, associados a alterações comportamentais, como aumento da hiperatividade e desenvolvimento de sintomas de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

Mais recentemente, uma pesquisa descobriu uma conexão misteriosa entre os dois distúrbios; ter um aumenta o risco de ter o outro em 45-53%. Ninguém sabe o porquê, mas uma ideia é que os medicamentos para asma causam sintomas de TDAH, alterando os níveis de serotonina ou substâncias químicas inflamatórias, que, acredita-se, estão envolvidas no desenvolvimento de ambas as doenças.

Às vezes, esses links são mais óbvios. Em 2009, uma equipe de psicólogos da Universidade Northwestern, em Illinois, decidiu verificar se os antidepressivos poderiam estar afetando nossas personalidades. Em particular, a equipe estava interessada em neuroticismo. Esse traço de personalidade é sintetizado por sentimentos de ansiedade, como medo, ciúme, inveja e culpa.

Para o estudo, a equipe recrutou adultos com depressão moderada a grave. Eles deram a um terço dos participantes do estudo o antidepressivo paroxetina (um tipo de inibidor seletivo da recaptação de serotonina), outro terço recebeu um placebo e o terceiro grupo, terapia. Eles então verificaram como o humor e a personalidade deles mudaram do início ao fim de um tratamento de 16 semanas.

“Descobrimos que grandes mudanças no neuroticismo foram provocadas pelo medicamento e não muito pelo placebo [ou pela terapia]”, diz Robert DeRubeis, envolvido no estudo. “Foi bastante impressionante.”

A grande surpresa foi que, embora os antidepressivos fizessem os participantes se sentirem menos deprimidos, a redução no neuroticismo era muito mais poderosa — e sua influência no neuroticismo era independente de seu impacto na depressão. Os pacientes que tomavam antidepressivos também começaram a pontuar mais em extroversão.

É importante observar que foi um estudo relativamente pequeno e ninguém tentou repetir os resultados ainda. Portanto, eles podem não ser totalmente confiáveis. Mas a ideia de que os antidepressivos estão afetando diretamente o neuroticismo é intrigante. Uma hipótese é que a característica esteja ligada ao nível de serotonina no cérebro, que é alterado pelo inibidor.

Embora se tornar menos neurótico possa parecer um efeito colateral atraente, nem sempre é boa notícia. Isso porque esse aspecto de nossa personalidade é uma espécie de faca de dois gumes; sim, foi associado a todos os tipos de resultados ruins, mas também se acredita que o excesso de pensamento ansioso possa ser útil. Por exemplo, indivíduos neuróticos tendem a ser mais avessos ao risco e, em certas situações, se preocupar pode melhorar o desempenho de uma pessoa.

“[O psiquiatra americano] Peter Kramer nos alertou de que, quando algumas pessoas tomam antidepressivos, o que pode acontecer é que elas começam a não se importar com as coisas com as quais se importavam”, diz DeRubeis. Se os resultados persistirem, os pacientes devem ser avisados ​​sobre como o tratamento pode alterá-los?

“Se eu estivesse aconselhando um amigo, certamente gostaria que ele estivesse atento a esses tipos de efeitos indesejáveis”, diz DeRubeis.

Nesse ponto, vale ressaltar que ninguém está argumentando que as pessoas devem parar de tomar seus medicamentos. Apesar de seus efeitos sutis no cérebro, os antidepressivos têm demonstrado ajudar a prevenir suicídios, os medicamentos para baixar o colesterol salvam dezenas de milhares de vidas todos os anos e o paracetamol está na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS), devido à sua capacidade de aliviar a dor. Mas é importante que as pessoas sejam informadas sobre possíveis efeitos colaterais psicológicos.

O assunto assume uma urgência quando você considera que algumas mudanças de personalidade podem ser dramáticas. Há evidências sólidas de que o medicamento L-dopa, usado no tratamento da doença de Parkinson, aumenta o risco de distúrbios de controle de impulso.

Consequentemente, a droga pode ter consequências drásticas, pois alguns pacientes começam a correr mais riscos, tornando-se apostadores patológicos, compradores excessivos ou viciados em sexo. Em 2009, um medicamento com propriedades semelhantes chegou às manchetes, depois que um homem com Parkinson cometeu uma fraude em multas no valor de 45 mil libras (R$ 209 mil). Ele culpou a medicação, alegando que havia mudado completamente sua personalidade.

A associação com comportamentos impulsivos faz sentido, porque a L-dopa está essencialmente fornecendo ao cérebro uma dose extra de dopamina — na doença de Parkinson, a parte do cérebro que a produz é progressivamente destruída —, e o hormônio está envolvido em nos fornecer sentimentos de prazer e recompensa.

Os especialistas concordam que a L-dopa é o tratamento mais eficaz para muitos dos sintomas da doença de Parkinson e é prescrita para milhares de pessoas nos EUA todos os anos. Isso ocorre apesar de uma longa lista de possíveis efeitos colaterais que acompanham o medicamento, entre eles, e isso é explícito na bula, dificuldade de controlar impulsos em coisas como jogos de azar ou sexo.

DeRubeis, Golomb e Mischkowski são da opinião de que os medicamentos que estão estudando continuarão sendo usados, independentemente de seus possíveis efeitos colaterais psicológicos.

“Nós somos seres humanos, você sabe”, diz Mischkowski. “Tomamos muitas coisas que nem sempre são boas. Sempre uso o exemplo do álcool, porque também é um analgésico, como o paracetamol. Tomamos porque sentimos que isso traz benefícios para nós, e tudo bem, desde que você tome nas circunstâncias certas e não consuma muito.”

Mas, para minimizar quaisquer efeitos indesejáveis ​​e tirar o máximo proveito das quantidades impressionantes de medicamentos que todos tomamos todos os dias, Mischkowski reitera que precisamos saber mais. Porque, no momento, ele diz, é em grande parte um mistério como eles estão afetando o comportamento dos indivíduos — e até da sociedade.

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