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Coronavírus: a epidemiologia do medo

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2020-02-05 11:00:08

 

Há duas semanas o surgimento do coronavírus na China é o principal assunto dos noticiários e manchetes de jornal. A bolsa de valores caiu, o dólar subiu, o ministro da saúde deu entrevista coletiva e a Organização Mundial de Saúde declarou que a infecção pelo novo coronavírus é uma “emergência de saúde pública”.

O medo está instalado. Uma amiga, enfermeira, me questionou se deveria desmarcar suas férias nos Estados Unidos. Falei que ela deveria ir, desde que não passeasse de helicóptero.

Risco Perceptível (população e indivíduo)

Nesta postagem, usarei o pensamento epidemiológico como norte probabilístico para a percepção de risco individual. Racionalmente, o risco perceptível do ponto de vista populacional deve ser diferente do risco perceptível de indivíduos da mesma população.

Governos e órgãos de controle de doenças infecciosas devem encarar o risco potencial do novo coronavírus se tornar epidêmico. Assim, enfáticas medidas de saúde pública são tomadas para reduzir a probabilidade da doença se alastrar de forma indesejável. Mas o equívoco cognitivo surge quando essas medidas, por serem disseminadas, trazem a conotação inadequada de que indivíduos estão sob alto risco.

O risco significativo de uma população sofrer uma epidemia não é o mesmo risco de um indivíduo dessa população se tornar doente.

População e indivíduos da população são diferentes. Para um indivíduo doente é bom que sua doença seja menos patogênica; mas para a população, a baixa patogenecidade não é tão boa, pois aumenta a transmissão da doença.

Paradoxalmente, quanto menos patogênica a doença é, mais provável desta se disseminar. O novo coronavírus tem em torno de 2% de letalidade, diferente do SARS (2003) que apresentou 10% de letalidade. A menor patogenicidade deste vírus faz com que muitos infectados não se sintam doentes e continuem transitando normalmente, aumentando a disseminação da doença. Por isso que os agentes chineses medem a temperatura de qualquer pessoa que passa pela rua.

Por outro lado, doenças de maior letalidade fazem com que o indivíduo fique tão doente que não consegue sair de casa, a não ser que seja para ir ao hospital. Assim, fica mais fácil de isolar estes indivíduos. Pior para o indivíduo, melhor para a população. No entanto, ao ver as medidas de isolamentos de cidades e agentes vestidos de branco pelas ruas, isso nos remete a uma doença de maior gravidade. Intuitivamente, ficamos com mais medo das consequências.

Assim, a probabilidade de uma epidemia se instalar não é o mesmo da probabilidade de uma pessoa ficar doente, muito menos desta pessoa morrer da doença. Ao pensar individualmente (sentimento de medo) devemos racionalizar risco e dano.

Qual o risco de eu adquirir a doença?
Qual o dano se eu adquirir a doença?

Risco de Doença

Farei um exercício probabilístico que não tem a pretensão de retratar de forma acurada a epidemiologia do problema, mas sim de tratar de forma acurada a percepção de risco quanto ao problema.

Vamos imaginar o pior cenário: vivemos na China. Até hoje foram 9.720 casos diagnosticados e 213 mortes na China. Se dividirmos o número de casos pela população da China (1,4 bilhões), a probabilidade de um chinês ter adquirido a doença até então é:

0.0007% (risco).

Justifica o medo? Não.

Sim, a doença vai se disseminar além das cifras atuais, afinal há um crescimento do número de casos. Mas observe que o denominador chinês não permitirá que a perspectiva mude.

Sim, é diferente um chinês em Pequim (menor risco) de um Chinês em Wuhan (maior risco). Estou trabalhando com a média ou suposição de homogeneidade de risco na China. Por outro lado, não estamos na China e nosso risco em qualquer outro lugar do mundo é menor do que Pequim. Por isso o cálculo vale para o ajuste cognitivo.

Dano da Doença

Agora vamos ao dano. Em adquirindo a doença, qual a probabilidade de morte? 2%.

Não é desprezível, mas se pensarmos na probabilidade de 98% de sair vivo e ao comparar com outras doenças agudas, até que esta não é das piores. A letalidade da pneumonia bacteriana comunitária no idoso é muito maior do que isso, sendo esta uma doença muito mais comum do que coronavírus.

Mas ninguém anda com pânico de pneumonia.

Risco de Morte: Risco*Dano

Finalmente, devemos combinar risco e dano. Ou seja, qual a probabilidade de uma pessoa da população adquirir a doença e morrer dela. Isso é uma probabilidade condicional, ou seja, P1 x P2.

Risco da doença = 0.0007% x Risco de morte = 2% = 0.00001% = 1 morte por 7 milhões

Desta forma, do ponto de vista individual, o medo não se justifica por bases probabilísticas.

Diálogo com a População

Justifica que ministros façam coletivas de imprensa? Justifica que as redes de TV convidem um exército de infectologistas para a televisão? Justifica que esta seja uma notícia dominante das últimas semanas?

Na verdade, isso pouco importa aos indivíduos da população, a não ser que o indivíduo trabalhe em algum escritório de controle de doenças infecciosas do ministério da saúde. Os governos precisam se planejar, cuidar do risco populacional. Enquanto os indivíduos podem viver suas vidas tranquilamente.

É justificável a preocupação profissional com esta questão; mas não é justificável a preocupação pessoal. O assunto deve predominar em reuniões de profissionais voltados para controle epidemiológico. Não é conversa de shows televisivos.

Claro, é natural que o assunto surja. Neste caso, como profissionais de saúde, devemos aproveitar a oportunidade para o literamento probabilístico da sociedade. Afinal, passamos a vida decidindo com base na razão de risco e benefício.

Se a população fosse uma pessoa, esta poderia estar com medo. A pessoa da população é o governo, este precisa se movimentar. Quando a nós, indivíduos, temos problemas muitos mais importantes para nos preocuparmos. Quanto mais nós, brasileiros bombardeados a cada dia por crises desencadeadas por problemas comportamentais que surgem de forma mais inesperada do que qualquer epidemia. Já temos nossos próprios “coronavírus”, incluindo nossos problemas de saúde pública.

Teremos um Cisne Negro?

Cisnes Negros, definidos por Nassim Taleb, são eventos improváveis, imprevisíveis e de grande impacto, que escrevem a história do mundo. Caso essa doença se alastre enormemente, isto poderá mudar o mundo. No entanto, o cisne negro só ocorre quando é imprevisível, pois se for previsto medidas preventivas impedem seu surgimento.

A epidemia já está prevista como uma possibilidade e medidas agressivas estão sendo tomadas pelos governos. Além disso, a história recente deste tipo de vírus (severe acute respiratory syndrome coronavirus (SARS-CoV) em 2002 e Middle East respiratory syndrome coronavirus (MERS-CoV) em 2012) sugere baixa probabilidade de uma catástrofe.

Em termos probabilísticas, não teremos um cisne negro e, após algum tempo, essa história se dissipará.

O Helicóptero da Racionalidade

Há poucos dias, meu ídolo do basquete americano, Kobe Bryant, morreu em um acidente de helicóptero. Isso me remeteu à seguinte questão: o que as pessoas mais temem nos dias atuais:

uma viagem de alguns dias pela China ou

um passeio de helicóptero sobre o Grand Canyon?

O mais frequente é o temor da China. Isto é racional?

Já sabemos que o risco de morte por coronavírus na china é 1 em 7 milhões.

Pesquisei, e encontrei que o risco de uma queda fatal de helicóptero é 1 / 250.000 (passeios-hora).

Portanto, precisaríamos fazer 28 viagens à China para igualar o risco de morte em um despretencioso passeio turístico de helicóptero.

De fato, emoção não é o mesmo que razão. Mas quando se trata de medo ou pânico, cabe a tutores da percepção sobre questões de saúde aproveitar a oportunidade e alfabetizar cientificamente a sociedade. Ao invés de contribuir como atores do pânico: “lavem as mãos, evitem aglomeração”.

Melhor dizer: vivam a vida, valorizem a incerteza, calculem as probabilidades.