Como parte do esforço concentrado de votações nesta semana, a Câmara dos Deputados incluiu na pauta a discussão sobre a venda de medicamentos em supermercados. A transformação de remédios em mercadoria gera apreensão do varejo farmacêutico e da Abrafarma, que lançou uma campanha de repúdio nas redes sociais.
De autoria do deputado Glaustin Fokus (PSC-GO) e com Adriana Ventura (Novo-SP) como relatora, o Projeto de Lei 1774/19 permite a comercialização dos medicamentos isentos de prescrição (MIPs) em supermercados e também em estabelecimentos similares. Até quitandas estão habilitadas para a venda, sem nenhuma previsão de uma farmácia dentro do estabelecimento ou da presença obrigatória de um farmacêutico para assistência ao consumidor.
Pressão setorial por medicamentos em supermercados
Sob intensa pressão do setor supermercadista, os defensores da proposta argumentam que é necessário ampliar o acesso a esses remédios e baratear os preços a partir do aumento da concorrência. “São argumentos rasos e injustificáveis. Os MIPs já estão disponíveis nas mais de 90 mil farmácias presentes em território nacional e, mesmo fora das gôndolas, envolvem o apoio de um profissional farmacêutico em 77% das ocasiões. As peças que lançamos nas redes sociais reforçam que a saúde dos brasileiros não pode ser cuidada pela vendinha da esquina”, critica Sergio Mena Barreto, CEO da Abrafarma.
O dirigente reforça ainda que mesmo os MIPs podem trazer riscos se consumidos de forma inadequada e que a indicação de uso é complexa. “Remédios respondem, em média, por 40% dos casos de intoxicação por ano no Brasil. Banalizar a exposição e comercialização desses produtos só agravaria o quadro atual. Quem vai dizer se o xarope pode ser utilizado pela criança? O açougueiro? E quem vai alertar que o MIP causa sonolência? O padeiro? E que determinado analgésico e antipirético não pode ser utilizado na dengue, por exemplo? Será o caixa que vai dizer isso ao consumidor? A pandemia nos ensinou que lugar de medicamento é na farmácia”, observa.
A mágica da redução dos preços
Barreto também questiona qual seria “a mágica dos supermercados para reduzir drasticamente os preços sobre medicamentos, cuja carga tributária chega a 36%. Além disso, um monitoramento da Abrafarma aponta que ao menos 2.670 itens são mais caros nesses estabelecimentos do que nas farmácias, entre eles antissépticos bucais, escovas de dente, fraldas descartáveis e desodorantes.
“Por que supermercados e estabelecimentos similares venderiam medicamentos mais barato do que as farmácias se vendem mais caro nas diversas categorias concorrentes? Além disso, os supermercados são o grande vilão da inflação que vivemos no Brasil atualmente, escalando preços de alimentos e outros produtos de forma alarmante. Não satisfeitos, agora se voltam para desestabilizar os preços de medicamentos. Valorizamos a liberdade de mercado, mas jamais às custas da fragilização do sistema sanitário”, contesta.
Comunicado aos deputados
A Abrafarma expôs sua preocupação com a precarização da venda de medicamentos em supermercados, por meio de um comunicado oficial aos deputados.
Meu caro deputado! Tudo bem? Gostaria de expor rapidamente uma grande preocupação para todo o setor de farmácias.
Existe a possibilidade de ser deliberada durante o esforço concentrado da Câmara do dia 1 a 5 de agosto, o PL 1774/19, que libera a venda de medicamentos isentos de prescrição médica em supermercado.
A matéria é altamente prejudicial para a saúde pública e afetará negativamente ao setor. Por esse motivo, gostaria de solicitar a gentileza de conversar com seu líder partidário para não ter consenso em votar urgência ou mesmo mérito do PL 1774/19.
Por que NÃO liberar MIPs em supermercados:
MIPs, apesar de não exigir receita, têm riscos e muitas vezes exigem indicação de uso, tanto que em 68% das vezes o cliente tira dúvidas com o farmacêutico acerca do uso. Exemplos:
Quais desses xaropes não dá sono?
Pode dar esse analgésico para criança?
Posso dirigir depois de usar esse relaxante muscular?
Esse anti-alérgico dá sono ou não?
Quem vai responder a essas perguntas no supermercado? O açougueiro? O padeiro? O caixa?
Apesar de seguros, MIPs MASCARAM SINTOMAS. Uma pessoa que só controla dor de cabeça com analgésico e não controla a hipertensão que a causa, é a mesma que vai agravar, ter AVC, Infarto e desenvolver nefropatia, e custar caro ao estado no longo prazo (e já morrem 500 mil pessoas/ano no Brasil de acidentes vasculares, pois não cuidam da doenças de base);
54% das pessoas que necessitam usar medicamento de uso contínuo (chamados de uso crônico) no Brasil já abandonam o tratamento depois de 6 meses. Um dos fatores é econômico. Deixar as pessoas cuidar somente dos sintomas, liberando medicamento que trata sintomas (MIPs) em qualquer lugar, é dizer para as pessoas “tudo bem você abandonar sua doença e cuidar só da dor de cabeça”. No médio e longo prazo teremos pessoas MAIS DOENTES e menos produtivas ou com MENOS EXPECTATIVA DE VIDA;
MIPs são um importante segmento da farmácia e representam mais de 30% das vendas. Portanto, o impacto econômico sobre as farmácias (das grandes às pequenas) será desastroso;
Nas 90.000 farmácias brasileiras temos 2 milhões de empregos diretos; 65.000 farmácias são optantes do simples/ micro-empresas. Aprovar MIPs em supermercados, apenas para lhe dar MAIS UMA categoria de vendas, é ferir de morte todo um contingente de famílias e colocar o equilíbrio econômico de todo um setor que funciona bem, em risco;
Países que tem MIPs em supermercados já resolveram a questão do acesso e abandono ao tratamento da doença. Nos EUA, Canadá e na Europa o paciente NÃO PAGA pelo remédio de uso crônico. Então, não há barreiras econômicas para o tratamento crônico. Não é o caso do Brasil;
Países que liberam MIPs em outros canais o fazem então como algo ADICIONAL, pois já resolveram o acesso às drogas prescritas. Mesmo assim, supermercados que vendem medicamentos se obrigam a ter uma farmácia (e venda assistida lá).
Dessa forma acreditamos que não deve ser liberada a venda de medicamentos isentos de prescrição médica em supermercados e pedimos o seu apoio para que essa matéria não seja pautada no Plenário da Câmara. Podemos contar com seu apoio?
Novela e lobby antigo
O debate sobre os MIPs em supermercados poderia ter acabado em 2004, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela proibição definitiva da venda de medicamentos em outros estabelecimentos. Mesmo assim, o Congresso Nacional vem mantendo viva a discussão sobre o assunto ao longo desses anos, atendendo a interesses particulares de um único setor em detrimento do compromisso com a saúde. O lobby econômico não parou desde então:
- Em 2009, o deputado Sandro Mabel tentou autorizar novamente a liberação por meio da MP 549/11. Apesar de aprovada como “contrabando” na Câmara dos Deputados, foi vetada em 2012 por Dilma Rousseff
- Em fevereiro de 2018, o projeto de lei de Ronaldo Martins (PRB-CE) foi encaminhado para a Comissão de Seguridade Social. No entanto, saiu da pauta pelo fato de o parlamentar não ter sido reeleito. O então presidente Michel Temer sinalizou apoio à iniciativa depois de analisar um pedido da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) para agilizar a votação
- Em junho de 2019, foi a vez de o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) sugerir a alteração da lei, após encontro com executivos da entidade supermercadista
- A Câmara Municipal de São Paulo ensaiou um movimento similar em 2020, mas no fim aprovou um projeto do vereador Gilberto Natalini (PV-SP) para vetar os remédios isentos de prescrição não apenas em supermercados, como também em bares, lanchonetes, hotéis e restaurantes
- Em junho de 2021, foi a vez de o governo federal estudar a possibilidade de lançar uma MP. O ministro da Economia Paulo Guedes chegou a defender publicamente a venda nesses estabelecimentos justamente no maior fórum do setor supermercadista.