Os últimos anos na oncologia foram revolucionários na compreensão do câncer, e o maior acesso ao sistema de saúde e a tratamentos avançados tem permitido que cada vez mais pessoas possam tratar a doença em seus estágios precoces.
Contudo, mudanças no estilo de vida da população colocam um alerta para o aumento de casos ao longo dos anos, exigindo um olhar específico para o enfrentamento das mulheres que recebem o diagnóstico de câncer no Brasil.
Ampliar os mecanismos de prevenção e rever hábitos é a chave para a identificação precoce e com mais chances de cura em todos os tipos da doença, especialmente nos chamados cânceres femininos, como aqueles que afetam a mama, o ovário, o endométrio e o colo do útero. É o que defendem Angélica Nogueira, oncologista e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, e Márcia Abadi, diretora médica da MSD Brasil, participantes do painel A Força e a Jornada Delas: uma conversa sobre câncer em mulheres, no Summit Saúde & Bem-Estar do Estadão, na última quinta-feira, 5 de outubro.
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De acordo com Márcia, o histórico familiar tem relação direta com a incidência de câncer, mas não é fator sine qua non para desenvolvê-lo. “Estilo de vida, sem dúvida, é o que mais conta.” Ela explica ainda que, para câncer de mama, ovário e endométrio, precisamos incentivar hábitos saudáveis, visto que obesidade, sedentarismo, tabagismo e uso excessivo de álcool são os principais fatores de risco da atualidade.
Segundo Angélica Nogueira, a medicina tem cada vez mais segurança em afirmar que uma dieta pautada na diminuição da gordura corporal e no aumento da massa magra tem impacto na redução de neoplasias malignas. “O câncer de endométrio, também chamado de câncer no corpo do útero, é um exemplo disso. A obesidade eleva a produção hormonal periférica e estimula essa região. Ele ainda é pouco frequente no Brasil, com cerca de 7 mil casos diagnosticados todos os anos, porém, nos Estados Unidos, que têm uma população que foi majoritariamente obesa por muitas décadas, esse índice é maior.”
Para ela, o Brasil caminha na contramão da redução desse índice. “Estamos envelhecendo e engordando mais. Infelizmente, mais de 50% das mulheres hoje têm sobrepeso, e cerca de 20% são obesas. Temos que nos preparar, do ponto de vista da conscientização populacional, para mudar o estilo de vida, mas também para estruturar a rede de saúde para essas pacientes que vão chegar com os anos.”
Outubro Rosa
O evento também chamou a atenção para a conscientização contra o câncer de mama. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), entre os tumores, ele é o mais frequente, sendo responsável por cerca de 30% dos diagnósticos. Até 2025, estima-se aproximadamente 75 mil novos registros por ano.
Angélica explica que de 75% a 80% dos casos têm influência do estrogênio e que todos os fatores de exposição a esse hormônio podem aumentar o risco da doença. “Isso inclui mulheres que tiveram a primeira menstruação muito cedo ou entraram tarde na menopausa, que passaram por reposição hormonal, que ficaram grávidas poucas vezes ou passaram por gravidez tardia, mais significativamente após os 35 anos.”
Nesse sentido, Márcia destaca o potencial do diagnóstico precoce para a maior eficácia dos tratamentos. “95% das mulheres diagnosticadas precocemente são curadas. Por isso é muito importante fazer o rastreamento com mamografia e ultrassom no momento adequado”, completa.
HPV: prevenção também é masculina
Principal causadora do câncer de colo do útero, a infecção pelo vírus do papiloma humano (HPV) é a doença sexualmente transmissível mais comum da humanidade e, embora as campanhas foquem majoritariamente a vacinação feminina, a imunização do Sistema Único de Saúde (SUS) inclui também meninos na faixa dos 9 aos 14 anos de idade. “Virtualmente, todos os cânceres de colo do útero são causados pelo HPV, e por isso há um maior foco na vacinação de meninas, mas outros cânceres, como o de pênis, do canal anal e de cavidade oral, também são HPV associados”, explica a ginecologista Angélica Nogueira.
Ela ressalta que o Brasil foi um dos primeiros países a ter vacinação contra HPV em crianças e adolescentes, e atualmente oferece a proteção também a pessoas imunossuprimidas e vítimas de abuso sexual de 9 a até 45 anos de idade, tanto homens como mulheres. Contudo, a taxa vacinal não é suficiente, especialmente em meninos, grupo que tem apenas 36% com a vacinação adequada na faixa etária. “Temos o potencial e não usamos. Se seguirmos assim, dificilmente vamos eliminar essas doenças.”
Márcia Abadi ressalta que a baixa adesão masculina está ligada à desinformação, que relaciona erroneamente a vacinação do HPV com iniciação precoce à vida sexual. “Isso é uma inverdade. A vacinação combate o câncer causado pelo vírus, não tem relação com a sexualidade em nenhum aspecto.”
Atualmente, há dois tipos de vacina contra o HPV. A mais disseminada é a quadrivalente, disponível no SUS, e que pode aumentar a proteção em até 70% contra os tipos de HPV oncológicos causadores de câncer de colo de útero. Contudo, já existe no mercado a vacina nonavalente, que oferece proteção adicional contra outros cinco sorotipos oncogênicos do HPV, elevando a proteção para 90%, especialmente quando somada a exames periódicos de prevenção e uso de preservativo em relações sexuais.
Entrevista
Márcia Datz Abadi, diretora médica da MSD Brasil
Empoderamento da paciente é fundamental
Márcia Datz Abadi, diretora médica da MSD Brasil, reforça que houve avanços no tratamento de câncer em mulheres, mas que o envelhecimento da população e o estilo de vida contemporâneo são grandes desafios.
Qual o diferencial do tratamento de câncer atualmente?
Hoje, sabemos que câncer tem nome e sobrenome. Antes, a gente chamava apenas de câncer de mama, câncer de intestino, câncer de colo de útero, etc. O câncer de mama, por exemplo, tem três tipos principais e hoje conhecemos as taxas de incidência de cada um deles. Quanto mais informação o médico tiver sobre o tipo de tumor específico do paciente, melhor será o tratamento, com maior eficácia e menor toxicidade. A informação faz muita diferença para o médico e para o paciente, pois o empoderamento dele sobre o entendimento da doença também é fundamental para o tratamento.
Últimos anos na oncologia foram revolucionários
Em relação à prevenção com vacina, quais são os principais avanços?
O grande destaque é a possibilidade de prevenir diferentes tipos de câncer pela vacina, não apenas do câncer de colo do útero, mas também de vulva, vagina, ânus, todos relacionados ao vírus do papiloma humano (HPV). Estima-se que entre 25% e 50% da população feminina e 50% da população masculina mundial estejam infectadas pelo HPV, que inclui mais de 200 tipos. No Brasil, isso significa que entre 9 milhões e 10 milhões de pessoas podem estar infectadas pelo vírus, com estimativas de que surjam mais de 700 mil novos casos por ano. Contra isso, temos no Sistema Único de Saúde (SUS) a vacina quadrivalente, que aumenta a proteção em até 70% contra os quatro tipos de HPV oncológicos, ou seja, aqueles que estão mais atrelados a casos de câncer. Ela está disponível gratuitamente de 9 e 14 anos de idade para meninos e meninas, independentemente do gênero, e para pacientes com HIV, pacientes imunossuprimidos, que receberam transplantes e pessoas que sofreram abuso sexual até 45 anos de idade. Além disso, recentemente lançamos a vacina nonavalente, que pode aumentar a proteção em 90% contra os tipos de HPV causadores de câncer do colo de útero.
Embora a prevenção e os tratamentos estejam avançando, os casos de câncer ainda crescem no mundo. O que esse impasse representa?
Vemos sim um crescimento dos cânceres no mundo e no Brasil. Quanto mais a gente prolonga a vida do ser humano, maior a chance de desenvolver um câncer. Uma vez que a gente tem prevenido doenças infecciosas, melhorado saneamento básico, aumentamos a longevidade. A curva demográfica do Brasil já mudou completamente. As pessoas estão vivendo mais e isso significa que vai aumentar os números de câncer, lembrando que câncer é uma mutação no organismo. À medida que a pessoa envelhece, o organismo perde a capacidade de reparar essa mutação. O envelhecimento está ligado diretamente ao aumento de incidência de câncer. Mas vemos também que pessoas mais jovens estão desenvolvendo câncer, o que mostra como o câncer tem relação direta com o estilo de vida, com certos hábitos como tabagismo e com a obesidade, que é uma pandemia mundial.