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Farmacêuticas brigam por extensão de 62 patentes de medicamentos após decisão do STF

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Neste mês, Johnson & Johnson sofreu derrota na Justiça para manter a exclusividade, por mais de 20 anos, do Stelara, remédio para o tratamento de doenças autoimunes

 

 

Empresas farmacêuticas, fabricantes de medicamentos de referência e de genéricos, travam uma disputa acirrada na Justiça em torno de patentes de 62 medicamentos – entre eles, o Saxenda e Ozempic, utilizados em tratamentos para perda de peso, e o Stelara, para doenças autoimunes. As donas das fórmulas originais querem manter a extensão do prazo de vendas exclusivas de seus remédios para além dos 20 anos legais de proteção das patentes. Mas uma mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, é um empecilho para elas.

A briga entre esses dois grupos começou a esquentar no contexto da pandemia de covid-19, quando cresceu um clamor de políticos, de juízes e dos governos para se acelerar e baratear tratamentos médicos. Foi nesse cenário que o STF decidiu pela inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (LPI), de 1996. A redação desse trecho permitia uma brecha para as patentes vigorarem por mais de 20 anos após ter o seu registro pedido – em alguns casos, até superar os 30 anos.

Quando a LPI foi aprovada, a legislação brasileira estabeleceu que o detentor de uma patente tem direito à exclusividade de sua exploração comercial por 20 anos para as patentes de invenção (no caso de invenção do produto), ou por 15 anos para as patentes de melhoria (quando ocorre o incremento de um remédio já existente).

O artigo 40, no entanto, previa que, a partir da data da concessão da patente, sua vigência deveria ser de, no mínimo, dez anos para as patentes de invenção e de sete anos para as de melhoria. Ou seja, se, por algum motivo, especialmente burocrático, uma patente de invenção só fosse oficialmente concedida 15 anos após a empresa ter dado entrada no pedido, ela teria mais 5 anos de exploração – tendo, ao final, 25 anos de exclusividade. Foi esse o entendimento que o STF considerou inconstitucional em 2021.

“Existe, nos Estados Unidos, um instituto jurídico que permite às empresas pedirem um ajuste da receita com patentes expiradas, se ocorrem atrasos na regulação. Mas, nesse caso, as empresas pedem uma recompensa monetária, não em tempo adicional. É uma aberração jurídica utilizar esse recurso para pedir mais tempo de patente no Brasil”, diz a vice-presidente do Grupo FarmaBrasil, Adriana Diaféria. “No final das contas, é uma tentativa de dar nó em pingo d’água na decisão do STF.”

O Grupo FarmaBrasil é uma associação que representa 12 empresas brasileiras do setor – como EMSAchéBiolabHyper Pharma e Eurofarma -, que têm forte atuação na venda de medicamentos genéricos, que só podem ser produzidos após a queda das patentes.

Por outro lado, as empresas donas das patentes expiradas e que entraram na Justiça – quase todas de origem estrangeira – defendem que a nova decisão do STF teria sido inesperada e acabou prejudicando o planejamento de negócios, de vendas e de investimentos em curso. Elas alegam que os medicamentos de referência que estavam ainda dentro do tempo extra de comercialização exclusiva não deveriam ter as suas patentes derrubadas imediatamente.

Por meio de comunicado enviado ao Estadão, a Interfarma, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, composta por empresas internacionais – como SanofiPfizerNovartisJohnson & JohnsonRocheAstraZenecaTakedaBayer e GSK -, afirmou que existe, “em diversos outros países (como Chile, Coreia do Sul, Estados Unidos, México e Colômbia), a concessão da recomposição do prazo de direito à exclusividade temporária de patentes, quando este tenha sofrido comprovado atraso injustificado por parte da Administração (no caso brasileiro, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI)”.

“Entendemos, ainda, que este regramento seria uma medida de balanceamento frente à demora excessiva do Estado brasileiro – demora essa que o INPI reconhece ter existido”, diz a associação. “Neste sentido, faz-se necessária a discussão de alteração da Lei de Propriedade Industrial para prever mecanismo de compensação de prazos para patentes que sofram atrasos injustificados no processo de análise do INPI.”

No entanto, até agora, as empresas de genéricos e biossimilares estão levando a melhor nas disputas jurídicas contra as criadoras de medicamentos inovadores. Das 62 ações abertas, 19 sentenças já foram favoráveis, pelo menos, na primeira instância, ao entendimento do STF de término imediato das patentes já em 2021.

Um exemplo relevante dessa disputa teve um capítulo decisivo no início deste mês, quando o desembargador João Carlos Mayer Soares, do Tribunal Regional Federal 1 (TRF1), julgou que a patente do Stelara (do princípio ativo ustequinumabe), da Johnson & Johnson, já está expirada, de acordo com a mudança de entendimento do STF. Esse medicamento é utilizado para o tratamento de doenças autoimunes, como psoríase, Doença de Chron e colite ulcerativa. A estimativa do Ministério da Saúde é de uma economia de R$ 130 milhões para os caixas do governo, em cada lote do medicamento.

A empresa americana contestou na Justiça, por três anos, o vencimento da patente, e recorreu de decisões judiciais provisórias. Já o Grupo FarmaBrasil e os fabricantes de biossimilares reclamavam que havia uma demora excessiva para decidir o caso. Ainda cabe recurso. A Johnson preferiu não se manifestar para esta reportagem, e não informou se vai entrar com um novo recurso na Justiça, mas disse que tem o posicionamento alinhado com o da Interfarma.

 

 

Papel da Anvisa

É importante, porém, não confundir o papel do INPI com outras aprovações necessárias no Brasil. Para uma nova molécula poder ser comercializada, ela precisa não apenas do registro de sua patente, como também de aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que analisa a qualidade, efetividade e a segurança do produto. Mas a decisão da Anvisa não conta para a exclusividade de comercialização de um medicamento. O prazo de proteção envolve apenas o registro no INPI.

Segundo a advogada Renata Rothbarth, sócia para as áreas de ciências da vida e saúde do escritório Machado Meyer Advogados, o INPI garante a invenção, avaliando a patente por três requisitos: inovação, atividade inventiva (checagem se é uma inovação mesmo) e produção industrial. Já a Anvisa faz uma análise de natureza sanitária, de aprovação e, depois, de fiscalização.

A disputa atual entre as farmacêuticas, segundo a advogada, acontece por ter ficado, na decisão do STF de 2021, “um espaço para diferentes interpretações”. O ministro Dias Toffoli, no momento de definir a modulação de efeitos do novo entendimento, estabeleceu que a regra valia retroativamente, apesar de as fabricantes pedirem que o prazo só contasse depois do julgamento. Elas alegaram, por meio de pedidos de esclarecimentos ao STF, que a ação direta de inconstitucionalidade trazia uma ressalva de direitos resguardados.

“Elas também usam o argumento de que a mudança traria insegurança jurídica”, diz Renata, que tem clientes tanto de um lado quanto de outro. A avaliação dela é que, em vez de o Brasil tratar de resolver o problema de atrasos do INPI, a decisão foi a forma que a Justiça encontrou de “dar um jeitinho” na questão. “Mas não podemos querer dar soluções simples para problemas complexos.”

Por seu lado, o Grupo FarmaBrasil argumenta que as farmacêuticas nacionais também defendem que o sistema de propriedade intelectual funcione bem e que traga proteções para as empresas inovadoras. Afinal, as brasileiras, além de vender genéricos – que são normalmente os seus maiores negócios -, também buscam inovações próprias. Apesar disso, a associação tem a posição de que não pode haver prazos tão longos para o fim de uma patente. “O Brasil tem um sistema de propriedade intelectual justo”, diz Adriana Diaféria. “Nos nossos levantamentos, descobrimos medicamentos que tiveram patente protegida por até 33 anos. Isso causa prejuízo para a sociedade. Uma versão genérica custa cerca de 35% menos.”

De acordo com a FarmaBrasil, caso as companhias donas das patentes vencessem as 62 ações que tramitam na Justiça, poderia haver um custo de cerca de R$ 7,6 bilhões para o consumidor e de R$ 1,1 bilhão para o Sistema Único de Saúde (SUS), segundo um estudo encomendado para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realizado no ano passado. Esse valor considera a economia que consumidores e o governo podem ter pagando por medicamentos genéricos ou biossimilares (quando se trata de cópias de remédios biológicos), em vez de comprar os remédios de referência.

Já a Interfarma alega que, “por anos, os processos de análise levaram mais de 10 anos para serem concluídos e há prejuízos aos titulares por essa insegurança”. Levantamento publicado em janeiro deste ano pela PhRMA (sigla para Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, em português, Fabricantes e Pesquisadores Farmacêuticos da América) mostra que o prazo médio de exame de patentes biofarmacêuticas no Brasil, no período entre janeiro de 2020 e setembro de 2023, foi de 9,5 anos. “De certa forma esses dados corroboram com levantamento interno da Interfarma de que a maior parte das ações individuais em curso são referentes a patentes cujos atrasos foram superiores a 10 e 15 anos”, informou a associação por meio de comunicado. “Para a Interfarma, a solução passa pelo fortalecimento do INPI.”

Com base em estudo de 2023 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o setor farmacêutico afirma ser mais intensivo em pesquisas e desenvolvimento do que outros setores semelhantes, por investirem mais de 30% do seu valor agregado bruto na busca de inovações, dentro dos países da OCDE. A porcentagem seria superior ao investido pela indústria eletrônica e óptica (23,5%), pela indústria aérea (14,7%) e pela manufatura como um todo (8,4%).

 

 

 

 

A farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk, dona do Saxenda e do Ozempic, afirmou, por meio de comunicado que está pleiteando “segurança jurídica para que empresas inovadoras possam seguir trazendo tecnologia de ponta para o mercado brasileiro” e que “os atrasos do INPI no processo de análise e concessão formal de patentes específicas da empresa, sejam proporcionalmente ajustados no tempo de vigência das respectivas patentes, garantindo os 20 anos de exclusividade de mercado para inovações, que é também o padrão ouro internacional”.

No Brasil, algumas patentes da empresa levaram mais de 10 anos para serem formalmente concedidas pelo INPI, sendo que a empresa só lançou tais produtos no mercado no período em que as patentes foram de fato concedidas. “O excessivo tempo tomado pelo INPI para processar a análise e concessão das patentes, com atrasos atribuíveis apenas à realidade do órgão e não da empresa, limitaram o tempo de vigência factual de algumas patentes a menos de 10 anos desde a sua concessão formal”, defende a Novo Nordisk.

Por meio de comunicado, o INPI afirma que “vem realizando uma série de ações nos últimos anos para acelerar os procedimentos e decidir pedidos de patentes em prazos compatíveis com a média internacional”. Essas ações envolvem a otimização de procedimentos internos, o aproveitamento de análises realizadas no exterior, a contratação de examinadores e o uso de ferramentas como automação e inteligência artificial, entre outros aspectos.

“Em 2024, o prazo médio entre o protocolo inicial do pedido de patente no INPI e sua decisão está em 4,4 anos, ou seja, menos da metade dos 9,3 anos registrados em 2014. Especificamente em relação aos fármacos, o prazo está em torno de 4,6 anos”, diz o comunicado. “O objetivo é chegar ao prazo de dois anos até 2026, conforme definido no Planejamento Estratégico do INPI para o período 2023-2026, com apoio do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Dessa forma, decisões em períodos superiores a dez anos a partir do pedido inicial, que ocorreram no passado, são situações que não condizem com a realidade atual do INPI.”

 

 

 

 

Fonte: Estadão
Fonte: Freepik