Vivemos tempos curiosos. Tempos em que a busca pela saúde foi sutilmente substituída pela busca do “Instagramável”. Transcorremos por uma infodemia, onde a ciência é muitas vezes atropelada pelo algoritmo e a visão da medicina reduzida a um balcão de desejos estéticos.
No centro desse palco de ring lights e filtros, a trend da vez é das famosas canetas emagrecedoras ou, em linguagem mais técnica, os agonistas de GLP-1. Elas chegaram ao imaginário popular com a promessa do milagre da magreza certeira e sem esforço. Cegos pela pressão estética, os consumidores buscam, à revelia de qualquer discussão sobre saúde, a validação em um padrão que as redes sociais impuseram.
O noticiário abunda em absurdos. Comércio espúrio de receitas, mercado clandestino, ampolas falsificadas, vê-se de tudo. Lamentavelmente, a estridência dos charlatões lança uma sombra injusta sobre a boa medicina, confundindo a opinião pública e obscurecendo o trabalho de profissionais sérios. Médicos que, longe da vaidade, utilizam tais fármacos não como cosmético, mas como recurso terapêutico.
Indicação para doenças
A Anvisa, a OMS e as próprias bulas desses medicamentos são claras: o uso é indicado para obesidade, diabetes e comorbidades associadas.
Em decisão recentíssima, a OMS, que já havia incluído estes remédios na sua “lista de medicamentos essenciais” para grupos de alto risco com diabetes tipo 2, agora também recomenda o seu uso prolongado em adultos com obesidade [1].
Todavia, dados analisados pela Anvisa demonstram que o uso de agonistas de GLP-1 fora da bula no Brasil cresce em ritmo superior à média global.
A visibilidade que se dá à uma possível banalização e má utilização desses medicamentos cria um clima de tensão e pressão popular tanto nos órgãos de controle quanto no próprio judiciário.

Prescrição fora da indicação da bula
A ANS é clara em sua RN 465/21 ao definir que qualquer prescrição fora da indicação da bula adentra o terreno do off-label. É evidente que não há nada de ilegal nessa prática, mas, juridicamente falando, é um território mais arriscado.
E o médico tem total autonomia para prescrever off-label. Isso é fato. Trata-se de prerrogativa decorrente das regras deontológicas.
E aqui reside a armadilha jurídica. O Código de Ética Médica é cristalino ao declarar que é responsabilidade do médico os efeitos decorrentes de qualquer ato profissional que tenha praticado ou prescrito, ainda que solicitado, consentido ou mesmo implorado pelo paciente (artigo 4º, Capítulo III).
Trocando em miúdos, ao paciente, cabe decidir se aceita os riscos apresentados; ao médico, cabe decidir se os benefícios superam os riscos antes mesmo de apresentar a alternativa ao paciente.
Essa balança de juízo de ponderação risco-benefício é indelegável.
Termo de consentimento
A responsabilidade foi descrita de forma cirúrgica por Romison Rodrigues Mota, diretor da Anvisa. Em 16 de abril, durante a reunião da diretoria colegiada que aprovou um controle mais rigoroso na prescrição e dispensação dos agonistas de GLP-1 — justamente para colocar um freio nesse cenário —, cravou em seu voto:
“O profissional médico tem a prerrogativa de prescrever medicamentos/preparações com finalidades distintas das que já estejam descritas nas referências reconhecidas (…) desde que entenda que, para determinado indivíduo/paciente, os benefícios superam os riscos. Tal procedimento se dá sob responsabilidade do médico e de forma devidamente informada ao paciente.” [2]
E é chegado o meu momento de destruir ilusões jurídicas: o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) não é um escudo impenetrável.
Se houver dano grave decorrente de uma prescrição off-label com fim estético, sem evidência científica robusta que a justifique, o termo de consentimento vale tanto quanto uma nota de três reais.
Jurisprudência derruba proteção ao médico
A jurisprudência derruba diversos escudos de proteção do médico nesses contextos. O direito do consumidor é implacável à relação médico/paciente e as suas regras tendem sempre à hipossuficiência informacional do paciente. O artigo 51, inciso I, e artigo 25 do Código de Defesa do Consumidor declaram nulas as cláusulas que impliquem renúncia de direitos. O paciente não pode assinar um termo autorizando o médico e tomando uma responsabilidade além do consentimento dos riscos inerentes e aceitáveis do tratamento. A responsabilidade civil não pode ser extinta por uma cláusula de não indenizar.
Nessa seara, mesmo prescrições bem feitas podem cair em uma ação judicial mal instruída e gerar uma indenização injusta ao médico.
Mas isso não quer dizer que o termo de consentimento perde completamente a sua eficácia. Para evitar quaisquer situações desagradáveis o TCLE deve conter informações suficientes e claras para que não se confunda uma prescrição offlabel com uma prescrição imprudente ou negligente. Trazer bases científicas e motivações clínicas completas e de fácil compreensão são artefatos de segurança muito mais eficazes.
Se o judiciário compreender que a prescrição foi temerária — isto é, se os riscos à saúde eram desproporcionais aos ganhos de saúde —, reconhecerá por consequência a imprudência. E havendo responsabilidade, dano e nexo causal, nasce o dever de indenizar, tanto moral quanto materialmente (artigo 6º, VI, do CDC).
Na dúvida, a prudência é sempre o melhor remédio.





