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Medicamento contra o câncer pode ser a chave para a cura do HIV, revela estudo

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Pesquisa inovadora desvenda análogos sintéticos capazes de “despertar” o vírus latente com eficácia sem precedentes, abrindo caminho para estratégias de erradicação

 

Com aproximadamente 39 milhões de pessoas vivendo com HIV em todo o mundo, a busca por uma cura permanece uma das maiores prioridades da medicina moderna. As terapias antirretrovirais (TARV), embora eficazes no controle da carga viral, não eliminam os reservatórios de células infectadas de forma latente – um obstáculo que condena pacientes a tratamentos vitalícios, com riscos de resistência, efeitos colaterais e custos elevados. Agora, um estudo revolucionário publicado na revista Science traz um avanço crucial: cientistas desenvolveram 15 novos análogos de uma droga já aprovada para câncer, o tigilanol tiglate (EBC-46), capazes de reverter a latência do HIV com eficácia até 90% superior aos agentes atuais.

 

O enigma da latência: Por que o HIV resistiu à cura?

O HIV integra seu material genético ao DNA de células do sistema imunológico, entrando em um estado de “hibernação” invisível às TARV. Esses reservatórios latentes são como bombas-relógio: mesmo com a carga viral indetectável, interromper a medicação resulta no retorno da infecção em semanas. Estratégias para erradicar o vírus focam em duas frentes:

  1. “Chutar” (Kick): Ativar o vírus latente, expondo as células infectadas.
  2. “Matar” (Kill): Eliminá-las com terapias imunológicas ou medicamentos.

Entre os agentes de reversão de latência (LRAs), os moduladores da proteína quinase C (PKC) destacam-se por sua capacidade de ativar vias celulares que “despertam” o HIV. O bryostatin 1, extraído de um invertebrado marinho, é um LRA promissor, mas sua produção complexa e efeitos tóxicos limitam o uso. É aqui que o EBC-46, originalmente desenvolvido para tratar tumores em animais e humanos, entra em cena – e seus novos análogos podem superar todas as expectativas.

 

 

Da floresta australiana aos laboratórios: a revolução do EBC-46

O EBC-46 é derivado da planta Fontainea picrosperma, encontrada em uma pequena região da Austrália. Aprovado para uso veterinário (mastocitomas em cães) e humano (sarcomas de tecidos moles), ele age modulando a PKC, proteína-chave na sinalização celular. No entanto, sua extração natural é limitada e cara. Usando síntese química escalonável, a equipe liderada pela Universidade de Stanford recriou o EBC-46 em laboratório e projetou 15 variações, muitas impossíveis de obter da fonte natural.

“Nosso objetivo era ir além da natureza. Modificamos regiões-chave da molécula para otimizar afinidade, seletividade e estabilidade”, explica Paul A. Wender, coautor sênior do estudo.

 

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Resultados chave: potência recorde e seletividade inédita

Os testes pré-clínicos revelaram avanços extraordinários:

 

1. Afinidade Picomolar e Ativação Ultra-Eficaz
  • SUW431: Um análogo com éster de naftilacetato na posição C13 mostrou afinidade à PKC em 79 picomolar (pM) – 20 vezes mais potente que o EBC-46 e 30 vezes mais que o bryostatin 1. Em células Jurkat (modelo de latência), reverteu a latência em 90% das células com apenas 40 nM, dose 6 vezes menor que a necessária para o EBC-46.
  • SUW400: Versão simplificada sem epóxi no anel B, tão eficaz quanto o original, sugere que simplificações estruturais podem reduzir custos de produção.

 

2. Seletividade por Isoformas da PKC

A PKC tem múltiplas isoformas (α, β, δ, γ, etc.), e ativá-las indiscriminadamente pode causar efeitos colaterais. Dois análogos se destacaram:

  • SUW430: Com éter terc-butílico na posição C12, mostrou 40 vezes mais seletividade pela PKC-β que pela PKC-δ, um marco para terapias direcionadas.
  • SUW428: Carbamato de pirrolidina na posição C13 manteve potência nanomolar com seletividade 12 vezes maior para PKC-β.

 

3. Segurança e Inovação em Pró-Fármacos
  • SUW427: Um pró-fármaco do EBC-46 (liberação lenta pela esterase) mostrou eficácia equivalente ao original, mas com perfil farmacocinético mais seguro. Em testes, sua atividade foi gradual, evitando picos tóxicos – estratégia que ampliou a janela terapêutica do bryostatin 1 em 100 vezes em estudos anteriores.

 

4. Mecanismos de Ação Revelados
  • Simulação Computacional: Modelos 3D da ligação do EBC-46 ao domínio C1 da PKC-δ mostraram que grupos hidroxila (C5 e C20) formam pontes de hidrogênio críticas, enquanto lipídeos (C12/C13) interagem com a membrana celular.
  • Ativação do NF-κB: Via essencial para reativar o HIV, foi fortemente induzida por SUW431 e SUW402 (3 vezes o nível basal), sem aumento significativo de citocinas inflamatórias – um sinal de segurança preliminar.

 

Desafios e próximos passos: do laboratório à clínica

Apesar do sucesso in vitro, os pesquisadores enfatizam que testes em modelos animais e humanos são urgentes. “A administração sistêmica desses compostos, diferente da injeção local usada em câncer, precisa ser avaliada para toxicidade”, alerta Olga D. McPherson, coautora. Outros pontos críticos incluem:

  • Combinação com Terapias de “Morte”: A ativação do vírus latente só é útil se as células infectadas forem eliminadas. Estudos recentes com bryostatin 1 e células NK (natural killer) em camundongos humanizados tiveram 40% de cura, sugerindo que a sinergia com imunoterapias (CAR-T, anticorpos) é viável.
  • Resistência e Cronograma: O HIV é mestre em evasão. Terapias combinatórias e pulsos de LRAs podem ser necessários para esgotar todos os reservatórios.
  • Acesso Global: Se aprovados, os análogos sintéticos – mais baratos que compostos naturais – poderiam democratizar o acesso a estratégias de cura.

 

Financiamento e colaboração: ciência sem fronteiras

O estudo foi financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA e envolveu universidades como Stanford, Harvard e a Universidade da Califórnia. “Isso mostra como colaborações interdisciplinares – da química à virologia – são essenciais para problemas complexos como o HIV”, celebra Wender.

 

Conclusão: um Futuro sem HIV?

Enquanto a cura definitiva ainda não é realidade, cada avanço como este acende esperança. Os análogos de EBC-46 não só superam os LRAs existentes em potência, mas também oferecem versatilidade para outras doenças – de distúrbios neurológicos a terapias CAR-T. Como resume McPherson: “Estamos transformando moléculas complexas em ferramentas precisas. O HIV pode ter encontrado seu rival mais formidável”.

A próxima década promete respostas – e, quem sabe, a tão aguardada virada no jogo contra uma das pandemias mais persistentes da história.

 

Foto: Reprodução
Fonte: CFF