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Publicidades de alimentos e medicamentos sob o olhar do STF

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Controvérsia em pauta no STF

Por convocação do ministro Cristiano Zanin, o Supremo Tribunal Federal realizará, no próximo dia 26 de agosto, uma audiência pública [1] de alta relevância para a Regulação Sanitária de Alimentos e Medicamentos e o Direito do Consumidor, sobre tema intimamente relacionado à proteção da saúde pública. Em discussão estará a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.788/DF, proposta pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) contra duas normas (Resolução de Diretoria Colegiada — RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): a RDC nº 24/2010, que dispõe sobre oferta, informação e publicidade de alimentos com teores elevados de nutrientes críticos ou bebidas com baixo teor nutricional, e a RDC nº 96/2008 (atualizada pela RDC nº 23/2009), que disciplina a divulgação ou promoção comercial de medicamentos.

 

A Abert sustenta que as referidas resoluções impõem restrições desproporcionais à publicidade de alimentos e medicamentos, violando os princípios constitucionais da reserva legal, livre iniciativa, livre concorrência, liberdade de expressão e comunicação comercial. Por outro lado, especialistas em saúde pública e entidades de defesa do consumidor, como o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), posicionam-se em defesa da constitucionalidade das resoluções, reconhecendo o papel técnico-normativo da Anvisa como expressão legítima do dever estatal de proteção à saúde e à informação adequada.

 

Escopo da ADI nº 7.788/DF

Em consonância com o princípio da informação clara e adequada previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC), a RDC nº 24/2010 da Anvisa estabelece que a publicidade de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans ou sódio — bem como de bebidas com baixo teor nutricional — deve ser direta, verdadeira e claramente identificável como peça promocional. A norma exige ainda a inserção de alertas específicos sobre os riscos do consumo excessivo desses nutrientes, com mensagens que advertem sobre a possibilidade de obesidade, cáries, diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares, conforme o nutriente em destaque.

 

Já a RDC nº 96/2008, ao proibir a veiculação de publicidade enganosa e/ou abusiva, veda, por exemplo, a inserção indireta de imagens, marcas ou substâncias ativas em espaços editoriais na televisão, novelas, espetáculos teatrais, programas de rádio e filmes, que não tenham identificação de se tratar de conteúdo publicitário. Também impede o oferecimento de brindes ou vantagens a prescritores ou dispensadores, vendedores ou aos consumidores, de modo a evitar estímulos comerciais indevidos.

 

Além disso, exige que todas as informações veiculadas sejam cientificamente comprovadas e apresentadas com legibilidade adequada — com contraste visual, clareza textual e tempo suficiente para leitura nas mídias audiovisuais. É vedada qualquer comunicação que estimule o consumo indiscriminado, sugira diagnósticos, apresente imagens de pessoas utilizando medicamento, empregue imperativos como “tome”, “use” ou “experimente”, ou sugira que a saúde do consumidor será afetada pela não adesão ao produto.

 

A Abert questiona a constitucionalidade das duas RDCs, alegando que a regulação da publicidade estaria sujeita à reserva legal, prevista no artigo 220, § 3º, II e § 4º da Constituição, e que apenas lei formal poderia impor restrições dessa natureza. Argumenta, ainda, que as exigências, como a veiculação de alertas sonoros e visuais inviabilizariam a publicidade de tais produtos.

 

A controvérsia central, portanto, é saber se a Anvisa possui competência para editar regulamentos que estabelecem obrigações em matéria de publicidade de produtos que afetam a saúde pública.

 

 

Competência normativa da Anvisa: fundamentos constitucionais e legais

A Constituição estabelece, no artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, incumbido de formular e executar políticas sociais e econômicas com objetivo de reduzir o risco de doenças e de outros agravos.

 

A Lei nº 9.782/1999, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, confere expressamente à Anvisa a competência de regulamentar, controlar e fiscalizar produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, dentre eles estão os alimentos (incluindo “bebidas, águas envasadas, seus insumos, suas embalagens, aditivos alimentares, limites de contaminantes orgânicos, resíduos de agrotóxicos e de medicamentos veterinários”) e os “medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias” (artigo 8°, § 1º, I e II). Essa competência foi reconhecida pelo STF no julgamento da ADI nº 4.874/DF, ocasião em que a Corte afirmou que a agência possui legitimidade para editar normas técnicas destinadas à proteção sanitária da população.

 

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo  6º, inciso III, estabelece o direito básico à informação adequada e clara, bem como sobre os riscos que apresentem. Esse princípio adquire contornos ainda mais sensíveis quando se trata de alimentos e medicamentos, produtos diretamente relacionados à saúde e ao bem-estar da população, consoante se extrai de seus artigos 8º e 9º. Este é expresso ao dispor que “o fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto”.

 

É relevante destacar que as resoluções impugnadas não proíbem a publicidade, mas impõem condições objetivas para que ela não induza o consumidor e erro ou a se comportar de modo prejudicial à sua saúde ou segurança. Aliás, constitui também direito básico do consumidor a proteção de sua vida, saúde e segurança; a divulgação sobre o consumo adequado de produtos e serviços; a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva; e a efetiva prevenção e reparação de danos [2]. Dessa forma, não há, minimamente, como cogitar a existência de censura prévia, mas sim uma materialização do dever de proteção do consumidor — especialmente aquele de vulnerabilidade agravada, como o são crianças e adolescentes, idosos, pessoas pobres e pessoas enfermas – bem como da coletividade, nos termos do artigo 170, inciso V, da Constituição.

 

Ademais, essas diretrizes alinham-se às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em documentos como o Set of Recommendations on the Marketing of Foods and Non-alcoholic Beverages to Children (2010) [3], orienta países a adotarem políticas públicas para reduzir o impacto das publicidades de alguns tipos de alimentos. A Resolução 63ª da Assembleia Mundial de Saúde, de 21 de maio de 2010, reconheceu “que uma quantidade significativa desse tipo de publicidade promove alimentos com altos teores de gordura saturada, gordura trans, açúcares e sal, e que a propaganda na televisão influencia as preferências alimentares da criança, as escolhas de produtos e os padrões de consumo infantil”.

 

Assim, a edição das RDCs questionadas encontra respaldo direto na Constituição e na legislação infraconstitucional, integrando o exercício legítimo do poder regulatório.

 

Neste contexto, verifica-se que não merece prosperar o argumento defendido na ADI n° 7.788/DF de que as exigências constantes nas RDCs n° 24/2010 e n° 96/2008 seriam desproporcionais, pois a proporcionalidade deve ser avaliada à luz do princípio da prevenção, que justifica intervenções do poder público quando há riscos significativos à saúde.

 

Audiência pública: escuta qualificada no julgamento da ADI n° 7.788/DF

A audiência pública convocada pelo STF representa uma oportunidade estratégica e institucionalmente relevante para ampliar a base informacional do tribunal antes do julgamento desta controvérsia de alta complexidade e repercussão social. Ao abrir espaço para a contribuição técnica e plural de especialistas, representantes da sociedade civil, agência reguladora e setor produtivo, o STF terá visão mais ampla sobre a importância da manutenção das bases normativas questionadas, reconhecendo que a interpretação constitucional também deve ser sensível ao conhecimento técnico, científico e social acumulado sobre o tema.

 

Nessa perspectiva, instituições como o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) desempenham papel fundamental ao trazer ao debate a perspectiva da tutela dos consumidores, da primazia da saúde pública e da legitimidade da atuação técnica da Anvisa no exercício de sua competência regulatória. A participação de entidades científicas e acadêmicas confere densidade crítica ao debate e contribui para desconstruir narrativas reducionistas, segundo as quais a regulação sanitária configuraria uma indevida restrição às liberdades econômicas. Ao contrário, demonstra-se que a regulação, quando orientada pela legalidade, pela ciência e pelo interesse público, é instrumento de equilíbrio e justiça nas relações de mercado, e não um entrave ao seu funcionamento.

 

Regulação legítima e necessária proteção da pessoa humana e do sistema de saúde

Diante do exposto, conclui-se que a Anvisa não extrapolou suas competências legais ao editar as RDCs nº 24/2010 e nº 96/2008. Ao contrário, agiu dentro de seu mandamento constitucional e legal, buscando reduzir riscos à saúde pública e assegurar que a publicidade cumpra sua função informativa, prezando pelos parâmetros determinados pelo Código de Defesa do Consumidor, que é norma de matriz constitucional (artigo 5º, XXXII, CF/88) e modelo reconhecido nos âmbitos regional e internacional.

 

As normas impugnadas buscam equilibrar o poder da comunicação de massa com a proteção da saúde e a promoção de escolhas alimentares e terapêuticas mais conscientes. Representam uma resposta regulatória moderna e fundamentada, cujo objetivo é salvaguardar o consumidor, especialmente os mais vulneráveis.

 

O julgamento da ADI nº 7.788/DF exigirá do STF a harmonização entre a liberdade econômica e a supremacia do interesse público, e extrapolará os limites formais do caso concreto: afirmará ou negará o espaço da regulação sanitária no Brasil contemporâneo. Nesse cenário, a audiência pública será decisiva para que a Corte se pronuncie com base em dados técnicos e científicos, experiências regulatórias e no compromisso maior com a proteção da saúde, da vida e do direito à informação.Parte inferior do formulário

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[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.788/DF. Relator: Min. Cristiano Zanin. Disponível aqui.

[2] Nos termos do art. 6º, incisos I, II, IV e VI, respectivamente, do CDC (Lei nº 8.078/90).

[3] “Recomendações Sobre a Promoção de Alimentos e Bebidas Não Alcoólicas Para Crianças”, págs. 15 e 23. Tradução em português baseada na publicação “Conjunto de recomendaciones sobre la promoción de alimentos y bebidas no alcohólicas dirigida a los ninõs”, produzida pela Organização Mundial da Saúde, em 2010, cujos direitos de tradução e publicação para a língua portuguesa foram concedidos à Anvisa. Disponível aqui.

 

Fonte: Conjur
Foto: Reprodução