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Lei que limita horário de funcionamento de farmácia é inconstitucional

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Diversas leis municipais, ao instituir o funcionamento de farmácias em regime de plantão com escalas de revezamento (rodízio), vedam a abertura ininterrupta daqueles estabelecimentos que, independentemente do rodízio instituído e paralelamente a ele, desejam assim funcionar. 

 

Em razão disso, a constitucionalidade dessas legislações tem sido questionada e, considerando a índole constitucional da matéria, o Supremo Tribunal Federal tem sido instado a pacificar o entendimento oscilante das decisões judiciais que proliferam sobre o assunto.

 

As drogarias não são estabelecimentos comerciais ordinários. A Lei nº 13.021/2014, que dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas, define o medicamento como insumo fundamental e estabelece o seu acesso como missão da assistência farmacêutica, inclusive a prestada por pessoas jurídicas de direito privado (artigo 2º [1]). Nesse sentido, prevê a legislação, a farmácia é essencial para a assistência à saúde e a orientação sanitária individual e coletiva (artigo 3º [2]).

 

Não por acaso, aliás, mesmo durante a pandemia causada pelo coronavírus, período no qual todo tipo de estabelecimento comercial sofreu restrição no funcionamento, determinou-se que as atividades das farmácias deveriam ser resguardadas, na medida em que desempenham atividade essencial à saúde e aos serviços médicos e hospitalares (artigo 3º, §1º, inciso I, do Decreto nº 10.282/2020 [3] e artigo 3º-J, §1º, inciso XXIII, da Lei 13.979/2020 [4]).

 

A Constituição consagra a competência concorrente dos entes federados para legislar sobre a proteção e a defesa da saúde (artigo 24, inciso XII [5]). Nesse arranjo, cabe à União editar normas gerais, que podem ser compreendidas como “não exaustivas, leis-quadro, princípios amplos, que traçam um plano, sem descer a pormenores” [6]. Os estados, por sua vez, exercem competência suplementar, isto é, delineiam com maior detalhamento dentro do quadro estabelecido pela legislação nacional [7] e só podem legislar plenamente na ausência dessa última (artigo 24, § 3º da Constituição [8]).

 

Aos municípios, por fim, cabe legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30, inciso I da Constituição [9]). Em relação ao horário de funcionamento de estabelecimento comercial, há entendimento já pacificado no sentido de que se trata de um assunto de interesse local e, portanto, que cabe a esses entes a sua fixação (Súmula Vinculante nº 38/STF, convertida a partir da Súmula 645/STF [10]).

 

As diversas legislações municipais, entretanto, precisam conviver com norma nacional que, de acordo com o artigo 24, inciso XII, da Constituição, prevê normas gerais sobre o funcionamento das farmácias: a Lei nº 5.991/1973, que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos. O artigo 56 da referida lei dispõe que as farmácias e drogarias são obrigadas a prestar atendimento ininterrupto à comunidade, o que deve ser garantido por meio de plantão em forma de rodízio, conforme normas a serem editadas pelos municípios, estados, Distrito Federal e Territórios.

 

 

Diante disso, a questão que os tribunais estão sendo instados a resolver é a seguinte: poderiam os municípios, ao legislar sobre o rodízio, vedar que as farmácias que assim desejem possam funcionar de forma ininterrupta, isto é, obrigá-las a participar do rodízio e a não funcionar quando for o momento estabelecido para funcionamento de outra farmácia? A resposta é, sem dúvidas, negativa.

 

A norma geral sobre o assunto (artigo 56 da Lei nº 5.991/1973) é clara ao dispor que a finalidade do plantão em rodízio é evitar a descontinuidade do atendimento. Trata-se de uma diretriz geral relacionada à essencialidade do serviço, decorrente de sua direta relação com a promoção da saúde e com os serviços médicos e hospitalares.

 

Os municípios podem e devem instituir regime de plantão no formato de rodízio para garantir que quantidade mínima de farmácias e drogarias permaneçam à disposição da população. Entretanto, não pode vedar que as demais farmácias, que não estejam obrigadas a funcionar em determinado dia ou horário, optem por fazê-lo. Eventual vedação ao funcionamento ininterrupto é contrária à própria diretriz do artigo 56 da Lei nº 5.991/1973, que é a de garantir a continuidade do atendimento farmacêutico.

 

A restrição do funcionamento ininterrupto das farmácias também não poderia subsistir após a edição da Lei de Liberdade Econômica, que em seu artigo 3º, inciso II [11], assegura o desenvolvimento de “atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais”. Conforme dispõe a própria legislação, trata-se de norma geral de Direito Econômico que, portanto, deve ser observada pelos demais entes federados nos atos de liberação de tais atividades [12].

 

Assim, antes de qualquer coisa, não há como deixar de reconhecer que a legislação local que limita o horário de funcionamento de farmácias é formalmente inconstitucional por se imiscuir em tema ínsito às normas gerais cuja edição compete unicamente à União.

 

Além disso, restrição de tal natureza também padece de inconstitucionalidade material. A competência legislativa dos municípios, naturalmente, deve ser exercida de acordo com as normas materiais da Constituição. Nesse sentido, aliás, é o entendimento de Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, segundo os quais: “É claro que a legislação municipal, mesmo que sob o pretexto de proteger interesse local, deve guardar respeito a princípios constitucionais acaso aplicáveis” [13].

 

O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu nessa mesma linha de raciocínio: embora os municípios sejam competentes para legislar sobre o funcionamento do comércio local, a teor do que dispõe a Súmula Vinculante nº 38, disso “não decorre a afirmação de constitucionalidade material de todas as normas editadas sob o exercício de tal competência” [14].

 

A afirmação foi feita no julgamento da Reclamação 35.075 AgR, que, aliás, tinha como pano de fundo a validade da regulamentação local sobre o plantão e o rodízio de farmácias. Naquele caso, a 1ª Turma do STF reconheceu ser materialmente inconstitucional a proibição de funcionamento ininterrupto de farmácias de forma paralela e independente ao plantão em rodízio, por afronta ao princípio fundamental da livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV e artigo 170 da Constituição) e ao direito fundamental do exercício do trabalho/profissão (artigo 5º, inc. XIII, da Constituição) [15].

 

Além disso, o colegiado destacou que tal restrição equivaleria à prática da reserva de mercado, o que é incompatível com o Estado Democrático de Direito e não promove vantagens nem ao ente municipal nem aos consumidores. Assim, foram considerados violados também os princípios gerais da livre concorrência e da defesa do consumidor (artigo 170, inciso IV e V, da Constituição).

 

Tema precisa ser enfrentado e pacificado com celeridade

Vale destacar, inclusive, que os ministros não se furtaram de analisar a questão sob o viés da proteção das pequenas empresas, mas, ao contrário, expressamente posicionaram-se no sentido de que a adoção de políticas protetivas para as pequenas empresas deve considerar os demais preceitos protetivos da ordem econômica. Além disso, chamaram atenção para o fato de que a fiscalização e controle de grandes oligopólios cabe ao Conselho de Defesa Econômica (Cade) e que, portanto, a “solução” adotada pelo ente municipal foi não apenas inconstitucional, mas também simplista, na medida em que incapaz de considerar as diversas nuances envolvidas.

 

Não é a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal aprecia a (in)constitucionalidade de leis municipais que são editadas sob o pretexto de proteção de pequenos comércios. É célebre a Súmula Vinculante nº 49/STF, segundo qual viola “o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área”. O precedente representativo da controvérsia foi o Recurso Extraordinário nº 193.749, que apreciou a fixação, por município, de distância para a instalação de novas farmácias ou drogarias [16].

 

Na oportunidade, sob os exatos mesmos fundamentos aplicáveis à hipótese de restrição de funcionamento ininterrupto de farmácias, entendeu o pleno do STF que “a competência do Município, de legislar sobre matéria de seu peculiar interesse, deve respeitar as normas de natureza constitucional, tais como o princípio da liberdade do comércio, da proteção à livre iniciativa, de busca de pleno emprego e de outros mais, (…)”.

 

Assim, é evidente que as legislações municipais que vedam o funcionamento ininterrupto das farmácias violam não apenas normas gerais estabelecidas pela legislação federal, mas também normas constitucionais de elevado valor social e axiológico, de maneira que é essencial que o tema seja enfrentado e pacificado pelo STF com celeridade.

 

[1] Art. 2º. Entende-se por assistência farmacêutica o conjunto de ações e de serviços que visem a assegurar a assistência terapêutica integral e a promoção, a proteção e a recuperação da saúde nos estabelecimentos públicos e privados que desempenhem atividades farmacêuticas, tendo o medicamento como insumo essencial e visando ao seu acesso e ao seu uso racional.

 

[2] Art. 3º Farmácia é uma unidade de prestação de serviços destinada a prestar assistência farmacêutica, assistência à saúde e orientação sanitária individual e coletiva, na qual se processe a manipulação e/ou dispensação de medicamentos magistrais, oficinais, farmacopeicos ou industrializados, cosméticos, insumos farmacêuticos, produtos farmacêuticos e correlatos.

 

[3] Art. 3º As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º.
§1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como:
I – assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares;

 

[4] Art. 3º-J Durante a emergência de saúde pública decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, o poder público e os empregadores ou contratantes adotarão, imediatamente, medidas para preservar a saúde e a vida de todos os profissionais considerados essenciais ao controle de doenças e à manutenção da ordem pública. (Incluído pela Lei nº 14.023, de 2020)
§1º Para efeitos do disposto no caput deste artigo, são considerados profissionais essenciais ao controle de doenças e à manutenção da ordem pública:
XXIII – farmacêuticos, bioquímicos e técnicos em farmácia;

 

[5] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;

 

[6] MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, livro eletrônico sem paginação – capítulo 10.5.

 

[7] Opta-se pela referência à “legislação nacional” e não à “legislação federal”, pois essa última expressão se remete com maior precisão às normas que estão adstritas ao âmbito federal apenas. A norma geral editada no âmbito da competência legislativa concorrente, por outro lado, tem abrangência nacional, pois condiciona a atividade legislativa dos demais entes em conformidade com suas diretrizes gerais.

 

[8] Art. 24, § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

 

[9] Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;

 

[10] Súmula Vinculante n. 38/STF: “É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial.”
Sumula 645/STF: “É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”

 

[11] Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
II – desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais, observadas:

 

[12] Art. 1º, § 4º O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei constitui norma geral de direito econômico, conforme o disposto no inciso I do caput e nos §§ 1º, 2º, 3º e 4º do art. 24 da Constituição Federal, e será observado para todos os atos públicos de liberação da atividade econômica executados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, nos termos do § 2º deste artigo.

 

[13] MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, livro eletrônico sem paginação – capítulo 10.6.

 

[14] DIREITO CONSTITUCIONAL. RECLAMAÇÃO. COMPETÊNCIA MUNICIPAL. HORÁRIO DE COMÉRCIO LOCAL. SÚMULA VINCULANTE 38. 1. Reclamação em que se impugna sentença na qual se afirmou, incidentalmente, a inconstitucionalidade material de dispositivo da Lei nº 5.954/2013 do Município de Colatina-ES que veda o funcionamento ininterrupto de farmácias.

 

A Súmula Vinculante 38 afirma a competência municipal para estabelecer o horário de funcionamento do comércio local. do seu texto, no entanto, não decorre a afirmação de constitucionalidade material de todas as normas editadas sob o exercício de tal competência. 3. agravo interno desprovido, com aplicação da multa prevista no art.1.021, § 4º, do cpc/2015.” (Rcl 35.075 AgR, Relator Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 27/09/2019)

 

[15] Decisão semelhante foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento monocrático do Recurso Extraordinário n. 1.298.385, realizado em 21/06/2021.

 

[16] RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEI Nº 10.991/91, DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. FIXAÇÃO DE DISTÂNCIA PARA A INSTALAÇÃO DE NOVAS FARMÁCIAS OU DROGARIAS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A Constituição Federal assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização do Poder Público, salvo nos casos previstos em lei. 2. Observância de distância mínima da farmácia ou drogaria existente para a instalação de novo estabelecimento no perímetro. Lei Municipal nº 10.991/91. Limitação geográfica que induz à concentração capitalista, em detrimento do consumidor, e implica cerceamento do exercício do princípio constitucional da livre concorrência, que é uma manifestação da liberdade de iniciativa econômica privada. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 193.749, Relator Min. Carlos Velloso, Relator para o acórdão: Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 04/06/1998).

 

Fonte: Conjur
Foto: Reprodução