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Interações medicamentosas

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2021-10-18 13:00:12

 

Segundo os especialistas, o tema das interações medicamentosas é complexo e repleto de novidades. Seu estudo é de certa forma recente, considerando que o assunto vem sendo aprofundado nas últimas décadas.

Apesar do termo, as interações não ocorrem apenas com medicamentos, mas também com alimentos e até com determinadas condições de saúde ou genética do indivíduo.

Tecnicamente, as interações medicamentosas foram definidas como “evento clínico em que os efeitos de um fármaco são alterados pela presença de outro fármaco, alimento, bebida ou algum agente químico-ambiental. Constitui causa comum de eventos adversos”, conforme a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.

“Embora o termo seja medicamentoso, nem sempre as interações acontecem entre substâncias ativas clássicas. Elas podem ocorrer entre os fármacos, entre medicamentos e alimentos, suplementos vitamínicos, cigarro, álcool e condições médicas do paciente, como temos visto com a pandemia do novo coronavírus”, explica o farmacêutico e professor de pós-graduação em Farmácia Clínica e Prescrição Farmacêutica do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Thiago de Melo.

Segundo o professor, as interações podem ser mal interpretadas e vistas como novas doenças, podendo gerar diversos tipos de prescrições. “Interação medicamentosa não detectada gera mais intervenções terapêuticas, ora com medicamento ora com outras condutas não farmacológicas. Detectada no ponto certo, ela pode evitar cascatas de procedimentos médicos”.

Os possíveis efeitos dessas interações podem levar ao prejuízo da atividade das drogas ou a um aumento da sua ação ou ainda gerar efeitos colaterais importantes. A atuação de um fármaco pode se manifestar em diferentes tecidos, visto que esses ativos podem atingir diversos alvos moleculares. Por esse motivo, há reações secundárias ao efeito principal de interesse no tratamento com um princípio ativo.

Assim, as interações podem ocorrer na farmacocinética (absorção, distribuição, metabolização e excreção) e na farmacodinâmica (relacionado ao local de ação de um fármaco). As interações farmacocinéticas são as mais frequentes e influenciam de forma significativa a farmacoterapêutica.

Muitas interações podem ser conhecidas por ter reações previsíveis, comuns e relacionadas à ação farmacológica. “Há casos em que se aguarda a interação ocorrer para tomar alguma iniciativa. Alguns pacientes não respondem às interações da mesma magnitude. Por isso que alguns livros abordam as interações de forma estratificada: muito provável, provável, pouco provável ou muito importante, relevante, muito relevante, irrelevante”, salienta Melo.

Já o farmacêutico e também professor da pós-graduação em Farmácia Clínica e Prescrição Farmacêutica no ICTQ, Rafael Poloni, destaca que muitas interações medicamentosas não são previstas, “porque todo dia surgem novos medicamentos e alimentos no mercado, e há pessoas com genética diferente que não foram abarcadas nos estudos dos medicamentos anteriores”.

Nem todas as interações estão documentadas e são conhecidas. Isso quer dizer que há a possibilidade de ocorrer uma interação e ela ser interpretada erroneamente como se fosse uma reação adversa dos fármacos envolvidos, e na realidade o que ocorreu foi uma manifestação da interação medicamentosa. Poloni completa afirmando que “à medida que forem surgindo novas interações, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deve ser notificada para que, se necessário, adotar a referida interação em bula”.

“O desafio da farmacologia é estar sempre na crista da informação. Jamais o profissional pode parar. É preciso estar sempre experimentando, testando”, frisa Melo, lembrando da definição de Goodman e Gilman (2006): “Assim como outras áreas biomédicas, a farmacologia é fundamentada mais em princípios de experimentação do que em dogmas, sendo, portanto, uma disciplina com fronteiras ilimitadas e inconstantes”.

Interações negativas

Boa parte das interações do tipo medicamento-medicamento envolve itens de prescrição obrigatória, mas algumas incluem medicamentos isentos de prescrição (MIPs), como o ácido acetilsalisílico, antiácidos e descongestionantes. Embora em alguns casos os efeitos de medicamentos combinados sejam benéficos, é comum que as interações medicamentosas tendam a ser prejudiciais.

Melo destaca, por exemplo, as interações que podem ocorrer com o ácido acetilsalisílico (AAS), popularmente conhecido como aspirina. Apesar de ser utilizada desde o século 19, por muito tempo não se sabia como a aspirina agia para diminuir a dor, tampouco o que poderia causar sua utilização associada a outro fármaco.

“Isso nos traz à reflexão de que algumas substâncias ativas estão no mercado há tanto tempo e ainda conhecemos pouco seus mecanismos de ação. Assim, a chance de identificarmos interações torna-se mais difícil. Quanto mais se conhece o fármaco, mais se fica seguro na tomada de decisão ou para interpretar uma possível interação”, diz o professor.

Aspirina já foi vendida para uma série de coisas – febre, dor de dente, reumatismo, dores nas costas, dor em geral. Teve até um xarope que combinou a substância com a heroína (um opioide). Porém, ao longo do tempo, foram sendo levantados alguns problemas com o uso do medicamento. No caso do AAS para crianças, o conhecido Melhoral infantil, descobriu-se que ele não é seguro para os pequenos. Ao mesmo tempo, conclui-se que ele pode ajudar na proteção cardiovascular de idosos.

Com a epidemia de dengue, os cientistas ficaram atentos ao mecanismo de ação da aspirina em relação à agregação plaquetária. O ácido acetilsalisílico age como um inibidor da enzima ciclooxigenase (COX-1), que atua na produção do tromboxano, produzido nas plaquetas e que tem a função de estimular a ativação de outras plaquetas, aumentando a agregação plaquetária. Ou seja, a aspirina pode prejudicar a agregação plaquetária, facilitando sangramentos.

“Na dengue, os níveis de plaquetas despencam. É natural que o paciente apresente plaquetopenia ou trombocitopenia. Então, se a doença já provoca queda de plaquetas não é conveniente sugerir que o paciente utilize um inibidor da produção de tromboxano, caso do AAS. Portanto, essa interação medicamento-doença não ocorre porque a plaqueta tem valor reduzido com a aspirina. Os níveis de plaqueta continuarão os mesmos (a dengue que os reduz), a aspirina apenas compromete a produção do fator que auxilia na agregação plaquetária”, esclarece Melo.

O professor salienta que não é apenas a aspirina que pode causar esse problema. “Qualquer inibidor de COX-1 pode fazer isso. Ibuprofeno, cetoprofeno, cetorolaco, diclofenaco também inibem o COX-1. Vale observar que os anti-inflamatórios não esteroidais inibem tanto a COX-1 quanto a COX-2. Assim, a excessiva inibição de COX prejudica a agregação de plaquetas”. Nesse caso, a alternativa para quem precisa de anti-inflamatório ou analgésico é substituir esses medicamentos por fármacos mais seletivos, que inibam apenas a COX-2, como a nimesulida.

Os problemas de associação da aspirina não se restringem a medicamentos alopáticos, também os fitoterápicos podem gerar interações importantes. O uso da aspirina com o Ginko biloba, por exemplo, é um potencial indutor de hemorragia.

Os MIPs também são vulneráveis a interações medicamentosas. Melo cita o caso do Engov, que é amplamente divulgado em campanhas publicitárias como um ‘antirressaca’. Contudo, na própria bula do medicamento diz que ele “não é indicado para pacientes com histórico de alcoolismo crônico”. Também diz lá que seu uso é contraindicado com outras substâncias que deprimem o SNC e com bebidas alcoólicas.

“Ou seja, a propaganda do medicamento vai contra a própria bula”, exclama Melo, lembrando que Engov possui AAS, portanto, inibe a produção de prostaglandinas. “Com isso, a produção de muco (gel que reveste a mucosa do estômago e mantém o pH dessa região em torno de 7) diminui. Quanto mais prostaglandina mais muco, que é o freio na produção de ácido. A aspirina aumenta a secreção ácida. Na presença do álcool, que também remove muco e agride a mucosa, há um efeito de sinergismo entre a aspirina e o álcool, aumentando a chance de sangramento digestivo”.

Sabe-se há muito tempo que o uso de aspirina e álcool causam hemorragia gastrointestinal. Um estudo de 1971, publicado na revista Gut, já apontava isso. “O álcool ajuda na remoção do muco, tem ação gastroirritante, aumenta a formação de radicais livres no estômago, enquanto a aspirina inibe a produção de prostaglandinas, aumentando a produção de ácidos. Então, os dois juntos formam um casamento perfeito para agressão gástrica. A chance de sangramento aumenta, quem tem gastrite agrava o quadro”, diz Melo.

Na bula do medicamento está indicado que seu uso é “para alívio dos sintomas de dores de cabeça e alergias”. Além de AAS, ele tem em sua formulação hidróxido de alumínio, que aumenta o pH do estômago, mas gera rebote ácido; cafeína, que também estimula a produção ácida; e mepiramina, para diminuir enjoos.

“É um absurdo ter no mercado uma substância que é pró-álcool. ‘Beba que depois você estará protegido’. Não, não estará. É um tipo de interação que se tolerou ao longo do tempo por desconhecimento” ressalta Melo.

O professor cita um caso real de uma senhora que, após sofrer uma queda e ter machucado o cotovelo, usou uma combinação de ibuprofeno, diclofenaco e cetorolaco, misturando automedicação com indicação médica. “É uma típica interação que poderia ser evitada, porque não se associa com segurança diclofenaco, cetorlaco e ibuprofeno. Os três viabilizam a mesma inibição de COX-1, prejudicando de forma muito intensa a produção de tromboxano, culminando em hemorragia. O sangramento não ocorre apenas com a aspirina, mas com a exposição excessiva a inibidores de COX-1”, explica Melo.

“As interações medicamentosas são frequentes na automedicação, haja vista que o paciente não costuma fazer uma avaliação completa no que tange sinais e sintomas. Medicamentos utilizados paralelamente, alergias, alimentos utilizados etc. Essas interações podem ser potencialmente perigosas, podendo levar até à morte, no caso de altas doses de paracetamol, por exemplo, que é um medicamento isento de prescrição médica, mas que possui efeitos adversos perigosos”, acentua Poloni.

Outra interação perigosa é entre anticoagulante (varfarina) e analgésico ou anti-inflamatório. “Para quem faz uso de anticoagulantes, a melhor indicação de analgésico seria o paracetamol ou dipirona (inibidores da COX-3), uma vez que esses dois analgésicos não inibem a COX-1. Ou seja, a chance de inibição de agregação plaquetária é muito inferior comparada ao ibuprofeno e AAS”, pontua Melo.

Medicina de alto risco

Estudo da Unesp da década de 2000 apresentou uma radiografia preocupante da atuação dos médicos brasileiros. A pesquisa mostra que eles frequentemente receitam medicamentos sem muita segurança. Dos médicos pesquisados:

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E os farmacêuticos? Podemos falar em farmácia de alto risco? “Nós, profissionais de Farmácia, estamos informados adequadamente sobre os compostos dos medicamentos?”, questiona Melo. “Para entender as interações medicamentosas é fundamental conhecer a composição das substâncias existentes no mercado”, conclui o professor.

Como as interações entre medicamentos podem ser de caráter físico, químico, farmacocinético ou farmacológico, cabe ao farmacêutico conhecer as possíveis causas de interação e intervir quando necessário: no local de absorção (alterações na microbiota e motilidade intestinal e interação química direta), fora do organismo (mistura de medicamentos), durante a distribuição (ligação às proteínas plasmáticas e ligação a tecidos – o adiposo principalmente), nos receptores (ação nos receptores e em órgãos e sistemas), durante o metabolismo (indução enzimática e inibição enzimática), na excreção (difusão passiva – reabsorção e transporte ativo).

Além de conhecer, o profissional precisa passar adiante o conhecimento adquirido. “O farmacêutico deve sempre orientar o paciente acerca do uso correto do medicamento, de interações medicamentosas mais frequentes, efeitos adversos, como evitá-los ou então reduzi-los, bem como atentar para sinais e sintomas estranhos à terapia medicamentosa, que devem ser relatados ao médico prescritor e ao farmacêutico”, observa Poloni, assinalando outro ponto importante. “É dever de qualquer profissional de saúde relatar quaisquer novas interações medicamentosas não relatadas em bula às autoridades sanitárias competentes”.