2019-01-31 11:35:08
‘Pessoas afetadas tem pouca voz política’, diz especialista, explicando falta de pesquisas por cura e tratamento para enfermidades como hanseníase, doença de Chagas e leishmaniose, que afetam em particular população de baixa renda.
Cerca de um bilhão de pessoas no mundo – um sexto de todos os humanos no planeta – são afetados pelas chamadas “doenças negligenciadas”: enfermidades que a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
O motivo? “Elas estão relacionadas à pobreza, não têm muito interesse para o mercado porque não dão um retorno lucrativo”, explica Sinval Brandão, pesquisador da Fiocruz e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT).
A OMS classifica 17 patologias como doenças tropicais negligenciadas. Elas são diferentes uma da outra, mas têm em comum o fato de atingirem principalmente pessoas de baixa renda ou em condição de miséria, em lugares pobres e em países em desenvolvimento.
Algumas das patologias são conhecidas há séculos, explica Ethel Maciel, epidemiologista da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Várias delas você já deve ter estudado na escola: teníase, lepra, doença de Chagas, esquistossomose, doença do sono, tracoma, oncocercose, filariose linfática, entre outras.
Para muitos que vivem em grandes centros urbanos no Primeiro Mundo, há a impressão (errônea) de que são doenças do passado, que já foram erradicadas. Afinal, em extensas partes do mundo nas quais as condições de vida e de higiene melhoraram, elas não são mais um problema.
Mas elas continuam bem presentes, concentradas em regiões pobres do mundo, em áreas rurais remotas, em favelas e áreas urbanas sem saneamento – inclusive (e em grande quantidade) no Brasil.
“O Brasil foi responsável por 70% das mortes no mundo por doença de Chagas em 2017; contribuiu com 93% dos novos casos de hanseníase e 96% dos casos de leishmaniose visceral do continente, só para citar alguns exemplos”, diz Jardel Katz, gerente de pesquisa e desenvolvimento da DNDI (Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas).
Se tanta gente é afetada, por que não se fala mais dessas doenças? Elas são silenciosas, diz a OMS, “porque as pessoas afetadas ou em risco tem pouca voz política”.
“Às vezes em que chamam a atenção é quando saem do circuito de baixa renda e locais pobres em que normalmente são endêmicas e atingem a classe média, bairros ricos”, diz Ethel Maciel. “É o caso da dengue, por exemplo.”
Algumas entidades consideram um grupo maior de enfermidades na lista das negligenciadas. O projeto G-Finder cita 33 enfermidades em seu relatório anual sobre doenças negligenciadas, incluindo tuberculose e malária na lista. O projeto é organizado pelo centro de estudos Policy Cures Research, dedicado a buscar formas de promover avanços na saúde da população mais pobre no mundo, e patrocinado pela fundação Bill & Melinda Gates.
Segundo Jardel Katz, da DNDI, todas as 33 doenças consideradas pelo G-Finder estão presentes no Brasil, em maior ou menor medida dependendo da região.
O Ministério da Saúde definiu em 2008 sete doenças negligenciadas como prioridade no país, com base em dados sobre seu impacto no Brasil: dengue, doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, malária, esquistossomose e tuberculose.
O problema é que, justamente em uma área tão dependente de investimento público, o gasto governamental com pesquisa e desenvolvimento vem caindo. Segundo um relatório da G-Finder publicado recentemente, o governo fez um corte de 42% em verbas para pesquisa em doenças negligenciadas entre 2016 e 2017.
Tratamento antigo
A falta de interesse da indústria farmacêutica faz com que essas doenças tenham tratamentos muito antigos, com limitações, baixa eficácia e reações adversas, explica Jadel Katz.
Um dos principais tratamentos para a leishmaniose, por exemplo, é feito com uma substância chamada antimoniato, que mata o protozoário causador da infecção.
“É um tratamento que tem mais de cem anos e é muito tóxico. A pessoa entra no tratamento e pode ter problema cardíaco, renal”, explica o epidemiologista Guilherme Werneck, doutor em saúde pública por Harvard e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
“Há um outro remédio, a Anfotericina B lipossomal, mas que é muito cara e também é bastante tóxica”, diz Werneck.
Ethel Maciel explica que a dificuldade não é só para tratamentos, mas também em prevenção e diagnóstico.
“No combate à dengue, a forma de se combater o vetor (o mosquito transmissor do vírus) é a mesma desde os anos 1980 na maior parte do país”, diz ela. No caso da dengue, hoje ainda não há remédio específico e apenas uma vacina, que tem baixa eficácia.
Pesquisa e desenvolvimento
“Para essas doenças é o setor público quem financia mais pesquisas, e isso gera descobertas importantes. Mas para questões de inovação e tratamento, a parceria com a iniciativa privada é essencial”, diz Werneck.
Isso porque, explica Jadel Katz, quando se fala de avanços na área da saúde em geral, normalmente as universidades e instituições públicas fazem a maior parte das chamadas pesquisas em ciência básica (estudando os agentes causadores e como combatê-los).
O estudo sobre a criação e aplicação de remédios propriamente ditos acaba ficando com a iniciativa privada, que tem mais dinheiro e estrutura – além do interesse econômico nisso. “Eles cuidam mais dessa etapa onde há as questões regulatórias, os testes clínicos, que exigem participação de pacientes, dinheiro”, diz Katz.
Além disso, há uma terceira etapa, de fabricação, que exige infraestrutura de produção.
No caso das doenças negligenciadas, no entanto, praticamente toda a pesquisa e desenvolvimento é feita pelo setor público ou por instituições sem fins lucrativos, principalmente estrangeiras.
“É uma área extremamente dependente de investimento público”, explica Sinval Brandão.
Mas mesmo que o setor público e a academia invistam em pesquisa, o avanço é muito mais difícil sem a infraestrutura da indústria, principalmente na criação de tratamentos e na fabricação de remédios.
No Brasil, instituições públicas como o laboratório de remédios Farmanguinhos, da Fiocruz, fazem esse trabalho, mas elas ainda são poucas e não conseguem ter um nível de produção comparável ao da iniciativa privada.
“Já que não é um business puro, é preciso ter alternativas de desenvolvimento”, diz Katz. “Trazer parceiros para conversar, tanto na esfera governamental e de ciência básica, quanto pensando em ter um parceiro industrial. É preciso ter diferentes parceiros, que dominam diferentes estágios de produção.”
Queda no investimento
No Brasil, há uma grande preocupação com a queda de investimentos do governo nessas doenças.
Segundo o relatório da G-Finder sobre investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em doenças negligenciadas, o investimento no Brasil caiu muito nos últimos anos – apesar de ter crescido no mundo, onde atingiu seu maior patamar em 2017.
De acordo com a pesquisa, publicada na semana passada, o total de investimento na área no Brasil foi de R$ 29 milhões em 2017, 42% a menos do que em 2016, o que tirou o Brasil da lista de doze maiores financiadores globais.
“Sentimos diretamente essa redução nos cortes orçamentários”, afirma Sinval Brandão, da SBMT. “A redução de investimento, que já se vinha sentindo nos últimos anos, em 2017 e 2018 foi muito maior, interrompendo projetos e fechando laboratórios.”
De acordo com o relatório, entre 2016 e 2017 a diminuição no financiamento público foi resultado do teto de gastos estabelecido pelo governo, que causou cortes de duas agências financiadoras: o Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES), que teve uma redução de R$ 15 milhões no investimento; e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que cortou R$ 14 milhões.
“Essa redução geral é extremamente significativa em uma área que tem tão pouco interesse do setor privado”, afirma Brandão.
Isso afetou praticamente todas as patologias negligenciadas consideradas prioritárias pelo Ministério da Saúde no Brasil.
O investimento em pesquisas sobre malária caiu 15%. Para leishmaniose, a redução de verbas foi de 63%. Para tuberculose, o corte foi de 45%.
Para doença de Chagas – problema para o qual o Brasil foi, durante cinco anos, o segundo maior financiador de pesquisas – o corte foi de 74%.
Só duas doenças tiveram aumento no investimento. Uma delas foi a dengue, que cresceu 41%.
A outra foi a esquistossomose, que teve um aumento considerável, de R$ 500 mil em 2016 para R$ 2,8 milhões em 2017 – aumento de 460%. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 1,5 milhões de pessoas viverem em áreas sob risco de contrair a doença.
O que diz o governo
Quando aprovou o teto de gastos, em 2016, o governo disse reiteradamente que o limite no orçamento não afetaria as áreas de saúde e educação – vários defensores da medida fizeram essa afirmação, incluindo os ministros Henrique Meirelles (que estava no Ministério da Fazenda) e Dyogo Oliveira (Planejamento).
Questionado pela BBC News Brasil, o Ministério do Planejamento afirmou que quem deveria se pronunciar sobre o assunto é o Ministério da Saúde. “O dinheiro sai do orçamento para o órgão. Ele é que decide onde e como gastar”, disse a pasta, em nota.
Já o Ministério da Saúde diz que seu Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) não fez cortes em doenças negligenciadas e que mantém pesquisas por meios de parcerias com órgãos governamentais como CNPq e Finep, mas que não responde por cortes feitos por agências financiadoras.
O ministério também afirma que o Brasil tem “alta carga de doenças não-transmissíveis, além das doenças transmissíveis e negligenciadas.”
“Isto faz com que os recursos para pesquisa sejam destinados para diversas frentes de conhecimento. Em relação especificamente às doenças negligenciadas, podem ocorrer destinações de recursos maiores ou menores para determinadas doenças a partir de necessidades específicas. Por exemplo, em 2016 e 2017, com a emergência em Zika, houve investimento maior em pesquisas relacionadas ao mosquito Aedes aegypti.”
A pasta destaca dados do relatório G-Finder que apontam o Decit como com um dos maiores financiadores de pesquisas relacionadas a controle vetorial do mosquito em 2017. Diz ainda que outras áreas do Ministério da Saúde e do Governo Federal “financiam pesquisas e não estão contemplados no relatório”, mas não especificou quais, para quais doenças e nem quanto foi investido.
No entanto, o ministério destacou uma lista de ações de combate às doenças negligênciadas que não envolvem pesquisa e desenvolvimento (e por isso não estão no relatório G-Finder), como “repasses extras anuais superiores a R$ 10 milhões para intensificação das ações de controle da malária nos Estados com maior registro de casos”.
“Quanto a hanseníase, o Ministério da Saúde realiza anualmente campanha para alertar a população sobre sinais da doenças, estimular a procura pelos serviços de saúde e mobilizar profissionais de saúde na busca ativa de casos, favorecendo assim o diagnóstico precoce, o tratamento oportuno e a prevenção das incapacidades”, diz a pasta, em nota.
O órgão também destacou o Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública, lançado no ano passado, e a “atuação em conjunto com as secretarias estaduais e municipais de saúde no controle das leishmanioses”, além do diagnóstico e tratamento gratuito oferecido no SUS para as doenças.