2017-09-20 13:00:47
Embora microscópicas e unicelulares, bactérias são extremamente espertas. Seres vivos mais antigos a habitar o planeta, elas aprenderam, na história evolutiva, a contornar as ameaças à sua existência. Graças a essa propriedade de mutação genética, as espécies patógenas adquiriram resistência aos antibióticos. E se elas foram rápidas na ação — afinal, a penicilina foi descoberta há menos de 90 anos —, a ciência não está acompanhando esse ritmo.
Em um relatório divulgado ontem, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que a pesquisa de novos medicamentos está atrasada, ao mesmo tempo em que o número de óbitos provocados por doenças transmitidas por bacilos e outros micróbios perigosos continua em alta.
O documento Antibacterial agents in clinical development — an analysis of the antibacterial clinical development pipeline, including Mycobacterium tuberculosis (Agentes antibacterianos em desenvolvimento clínico — uma análise do desenvolvimento clínico em andamento, incluindo Mycobacterium tuberculosis) aponta que apenas a tuberculose resistente a antibióticos mata 250 mil pessoas por ano.
Ao mesmo tempo, de 51 drogas e combinações de medicamentos dessa classe em testes para tratamento de patógenos resistentes prioritários, somente oito são considerados pela OMS como verdadeiramente inovadores, com “potencial de adicionar valor ao arsenal atual”.
“A resistência antimicrobiana é uma emergência de saúde global que vai comprometer seriamente o progresso da medicina moderna”, avaliou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, em um comunicado.
“Há uma necessidade urgente de mais investimento em pesquisa para infecções resistentes a antibióticos, incluindo tuberculose, ou, de outra forma, seremos forçados a voltar a um tempo em que as pessoas temiam infecções comuns e arriscavam suas vidas durante pequenas cirurgias”, alertou.
O infectologista do Hospital Santa Lúcia Werciley Júnior, chefe da Comissão de Controle de Infecção do Grupo Santa, lembra que as duas últimas grandes novidades em antibióticos de largo espectro e para combate a bactérias gram-negativas ocorreram, respectivamente, em 1994 e 1998. Há dois anos, uma combinação de drogas preexistentes se mostrou eficaz para a temida KPC (Klebsiella pneumoniae Carbapenemase), popularmente chamada de superbactéria. Esse regime ainda não foi aprovado no Brasil.
Júnior explica que um conjunto de fatores contribui para que as bactérias alterem seus genes de forma a se tornar resistentes aos medicamentos. Os dois principais são o mau uso e o uso abusivo dessa classe de remédios.
“Há até pouco tempo, se tomava antibiótico para tudo: gripe, resfriado, qualquer doença viral”, recorda. “E as pessoas têm essa mania de parar de tratar quando se sentem bem clinicamente. Não pode interromper o tratamento em um primeiro momento, é preciso um uso racional e coerente”, diz.
Mau uso
A coordenadora do Comitê de Resistência Antimicrobiana da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Ana Gales, explica que, mesmo quando há indicação para o antibiótico, é essencial saber com qual bactéria se está lidando.
“Quando falamos em uso adequado, estamos falando daquele feito de acordo com o resultado do antibiograma, que é o teste realizado em laboratório para saber se a bactéria é sensível ao antibiótico ou não”, diz. “Com isso estabelecido, a dose correta deve ser prescrita pelo período apropriado de tempo.”
No Brasil, desde 2010, os antibióticos só podem ser comprados com receita médica. Essa é uma medida considerada fundamental pela OMS, para reduzir os riscos de resistência. Contudo, alguns países ainda vendem essas drogas sem necessidade de prescrição.
Uma pesquisa do Escritório Regional da OMS na Europa de 2014 revelou que, em 19 países do continente, era possível comprar alguns antibióticos sem receita; em cinco, a venda pela internet, sem indicação médica, era comum; e em 12, os cidadãos adquiriam facilmente as drogas em clínicas veterinárias e no mercado negro.
O infectologista Werciley Júnior destaca que, além do mau uso e do exagero na utilização dos antibióticos, a aplicação desse tipo de medicamento na pecuária tem grande parcela de culpa no problema das bactérias resistentes. “Quem mais consome antibiótico no mundo são os animais”, lembra.
Um estudo recente divulgado na revista Lancet Infectious Diseases revelou que na China, por exemplo, a emergência de uma ampla variedade da bactéria E.coli super-resistente a medicamentos está diretamente associada à aplicação de antibióticos na criação suína.
“A chave para frear o crescimento das bactérias resistentes é evitar o uso de antibióticos não só em humanos, mas na criação de animais, de desinfetantes e de metais pesados que têm ação antimicrobiana e podem favorecer a resistência bacteriana”, reforça Ana Gales, da SBI.
Prioridades
No relatório divulgado ontem, a OMS listou 12 classes de patógenos prioritários, além do bacilo de Koch, causadores de infecções comuns, como pneumonia e infecção urinária, que estão se tornando extremamente resistentes e, por isso, precisam de novos agentes de combate. Entre eles estão os micro-organismos gram-negativos, incluindo a Acinetobacter e a Enterobacteriaceae.
A OMS alerta que há pouca pesquisa para formulação tanto de antibióticos utilizados em hospitais quanto para os medicamentos orais. “As companhias farmacêuticas e os pesquisadores devem se focar, urgentemente, em novos antibióticos contra certos tipos de infecções extremamente sérias, que podem matar os pacientes em questão de dias, porque não temos linha de defesa contra eles”, alerta Suzanne Hill, diretora do Departamento de Medicamentos Essenciais da OMS.
De acordo com o infectologista Werciley Júnior, a resistência a antibióticos é justamente uma das causas de haver pouca novidade na área. “Para produzir um novo antibiótico, a indústria leva cerca de 10 anos e quatro etapas de pesquisa, a um custo que pode chegar a US$ 8 bilhões. Aí a bactéria rapidamente se torna resistente a ele, e o remédio deixa de ser lucrativo”, explica.
“Para produzir um novo antibiótico, a indústria leva cerca de 10 anos e quatro etapas de pesquisa, a um custo que pode chegar a US$ 8 bilhões. Aí a bactéria rapidamente se torna resistente a ele, e o remédio deixa de ser lucrativo”
Werciley Júnior, chefe da Comissão de Controle de Infecção do Grupo Santa