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O termo vem do inglês “deprescribing”, que apareceu pela primeira vez na literatura farmacêutica em 2003. Em resumo, a desprescrição é um processo planejado e supervisionado para redução de dose ou descontinuidade de medicamentos consumidos há anos, sobretudo por pacientes idosos, que podem não estar mais trazendo benefícios ou até causar prejuízos à saúde. Basicamente, as farmácias são o principal cenário dessa operação – quem conduz o processo é o farmacêutico, dentro da hoje indispensável “assistência farmacêutica”. Mas, na prática, a desprescrição ainda engatinha e traz muita polêmica. Aqui, ouvimos duas farmacêuticas de renome – as Dras. Luciane Cruz Lopes, Líder do Núcleo de Políticas Informadas por Evidências no Brasil e ex-consultora da OMS, Anvisa e Ministério da Saúde, e Walkyria Sigler, professora de graduação e pós-graduação nas Faculdades Oswaldo Cruz. Elas tiram todas as dúvidas do leitor da ABCFARMA que ainda não foi apresentado a um dos termos farmacêuticos do momento.
Dra. Walkyria, a expressão “desprescrição” surgiu há quase 20 anos, mas agora está tomando vulto, sendo objeto de seminários e webinars. Por quê?
“A percepção de que existe medicalização excessiva, que pode causar males para o paciente, foi um fator decisivo para o surgimento da desprescrição. Especialmente nos idosos, a polifarmácia está quase sempre presente e motivou o interesse por uma intervenção mais efetiva nesse público, revisando a farmacoterapia e empreendendo modificações. Porém, o reconhecimento do farmacêutico como profissional imprescindível no processo de cuidado farmacoterapêutico do paciente, conferido pelas resoluções CFF 585 e 586 de 2013, tem sido um catalisador importante para a adoção da Atenção Farmacêutica em farmácias e drogarias. Todos esses fatores atuaram juntos para culminar, neste momento, com a popularização da desprescrição”.
Dra. Luciane, poderia dar exemplo de como identificar o momento em que é necessário desprescrever?
“Várias situações podem requerer um processo de desprescrição. Por exemplo, quando temos um paciente com polifarmácia inapropriada – polifarmácia significa o uso de cinco ou mais medicamentos simultaneamente. E inapropriada, quando esses medicamentos, juntos, trazem riscos potenciais que superam os benefícios. Ou que sejam excessivamente onerosos – entre outros critérios para se caracterizar um medicamento inapropriado”.
Quais são os riscos concretos de polifarmácia inapropriada?
“Cerca de 8,6 milhões de pessoas por ano na Europa são hospitalizadas devido a reações adversas a medicamentos – e 50% dessas hospitalizações seriam evitáveis se os pacientes tivessem sido submetidos a uma revisão de sua farmacoterapia”.
Segundo a Dra. Luciane, a prevalência de polifarmácia inapropriada depende do contexto. O período pós-Covid-19, por exemplo.
“Alguns dados apontam que a prevalência em idosos pode superar 30% das prescrições. Pelos menos 10% de todas as prescrições da atenção primária contém um medicamento inapropriado. Imagine o que vai acontecer pós-pandemia? Muitos pacientes utilizando medicamentos inapropriados prescritos para algumas condições durante a pandemia que não se aplicam mais no período pós. Muitos pacientes desenvolveram crises de pânico e ansiedade durante esse período. Os medicamentos então prescritos precisam ser cuidadosamente revisados hoje para verificar se os mesmos seguem sendo úteis aos pacientes na pós-pandemia”.
A desprescrição tem tudo a ver com o tão defendido “uso racional de medicamentos”?
Diz a Dra. Walkyria: “Sem dúvida, pois isso envolve utilizar apenas os fármacos cuja relação benefício-risco seja favorável ao paciente. Portanto, os medicamentos que não obedeçam a uma adequada relação benefício-risco devem ser descontinuados ou desprescritos. E isso é uso racional”.
Para ela, é um procedimento que veio para ficar na chamada assistência farmacêutica.
“Porque a desprescrição não é apenas o ato de interromper um medicamento ou reduzir sua dose, mas é produto da revisão criteriosa e contínua do tratamento farmacológico do paciente. E isso é algo que sempre será relevante”.
A desprescrição tem as farmácias e drogarias como seu único cenário?
“Eu diria que não. Afinal, onde há prescrição pode haver desprescrição. Assim, ela acontece também em hospitais. Porém, em relação às farmácias e drogarias, o farmacêutico desempenha um papel fundamental, pois consegue, primeiramente, ter um contato muito efetivo com o paciente, o que propicia o ambiente favorável de confiança e comprometimento para intervenções. Além disso, o farmacêutico tem uma visão abrangente de todos os medicamentos que o paciente utiliza, prescritos por vários profissionais, e pode, dessa forma, detectar razões que motivem a proposta de retirada de um medicamento do tratamento. Por exemplo, o farmacêutico pode perceber que o paciente está fazendo uso de medicamentos com o mesmo mecanismo de ação, mas prescritos por médicos diferentes”.
A Dra. Luciane confirma: “O farmacêutico é o ator principal da desprescrição. Ele conduz o processo de revisão da farmacoterapia. Ele deve mapear o que se passa com o paciente. No entanto, ele deve engajar a equipe, os cuidadores do paciente – e o próprio paciente. A desprescrição é um processo multiprofissional, que precisa ser discutido pela equipe, envolvendo também médicos, enfermeiros e até psicólogos”.
Um aspecto fundamental do ato da desprescrição: ele é limitado por questões legais e éticas imprescindíveis. Explica a Dra. Luciane:
“Suponha que um médico queira desprescrever o que um colega prescreveu. O Código de Ética Médica, no artigo 52, estabelece que é vedado ao médico “desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente determinado por outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria, salvo em situação de indiscutível benefício para o paciente, devendo comunicar imediatamente o fato ao médico responsável”. No caso do farmacêutico: a Resolução nº 586, de 29 de agosto de 2013, do Conselho Federal de Farmácia, estabelece em seu artigo 6 que “é vedado ao farmacêutico modificar a prescrição de medicamentos do paciente, emitida por outro prescritor, salvo quando previsto em acordo de colaboração, sendo que, neste caso, a modificação, acompanhada da justificativa correspondente, deverá ser comunicada ao outro prescritor”. Como acordo de colaboração, entende-se uma parceria formal estabelecida entre o farmacêutico e o prescritor ou a instituição de saúde, que autoriza o farmacêutico a prescrever em algumas situações. Tais situações devem estar explicitadas conforme previsto no artigo 6: “O farmacêutico poderá prescrever medicamentos cuja dispensação exija prescrição médica, desde que condicionado à existência de diagnóstico prévio e apenas quando estiver previsto em programas, protocolos, diretrizes ou normas técnicas”.
A desprescrição prevê uma parceria obrigatória com os médicos prescritores? Diz a Dra. Walkyria:
“Essa é uma questão muito importante. No meu entender, o farmacêutico só pode desprescrever aqueles medicamentos que ele também possa prescrever, ou seja, os medicamentos isentos de prescrição (MIPs). Mesmo assim, obedecendo a todos os procedimentos preconizados na Resolução CFF 586/2013 e em acordo com o paciente. Porém, há que se enfatizar que o profissional farmacêutico está totalmente apto a propor reduções de dose, bem como a retirada de medicamentos ao profissional prescritor, o que torna o seu papel decisivo na desprescrição”.
Uma pergunta inevitável: a desprescrição pode trazer riscos aos pacientes?
Dra. Luciane: “Sim. Qualquer processo de modificação da terapia pode trazer algum risco – de abstinência, de efeito rebote, de descontrole da doença de base, etc. Por isso, é importante o monitoramento constante daquele paciente, principalmente nas semanas que sucedem o processo de desprescrição. Isso é parte do cuidado farmacêutico”.
Quando falamos em desprescrição, nos referimos exclusivamente a pacientes idosos?
“Não. A desprescrição pode se aplicar a qualquer paciente que esteja utilizando um medicamento inapropriado. Isso inclui crianças, grávidas etc”. Completa a Dra. Walkyria: “O paciente idoso é mais vulnerável, sim, aos efeitos adversos de medicamentos quando comparado a um paciente jovem. Por exemplo, medicamentos que causem sonolência são muito mais deletérios no paciente idoso, pois os idosos que fazem uso desses medicamentos estão sujeitos a tontura, quedas e fraturas. Por isso, os benefícios da desprescrição no paciente idoso, quando feita adequadamente, repercute num resultado muito mais contundente. Daí o fato de se vincular, muitas vezes, o ato da desprescrição a esse público”.
Poderia citar exemplos práticos de desprescrição?
Dra. Walkyria: “Existem algoritmos específicos para a desprescrição de vários medicamentos. Esses algoritmos norteiam o processo decisório quanto a propor ou não uma redução de dose ou a supressão do medicamento. Podem-se citar os algoritmos para a desprescrição de inibidores de bombas de prótons, antipsicóticos, hipnóticos não benzodiazepínicos e benzodiazepínicos, entre outros. Inicialmente, em qualquer caso, é avaliado em qual contexto o medicamento foi prescrito para se verificar se a condição que motivou o seu uso ainda está presente. Depois, pode ser avaliado se o uso daquele medicamento está desaconselhado para aquele perfil de paciente. Assim, por exemplo, no caso dos benzodiazepínicos estes podem ser inapropriados aos idosos e isso pode pesar a favor da sua desprescrição. Importantíssimo ressaltar que, havendo a decisão pela supressão de um medicamento, devem-se observar todos os cuidados para seu desmame, já que vários fármacos causam síndrome de abstinência durante sua retirada. E essa é mais uma razão para a desprescrição ser feita em conformidade com orientação médica”.
O farmacêutico sai da faculdade preparado para “dispensar” um medicamento inapropriado em sua farmácia? Diz a professora Luciane:
“Não saem nem preparados para a revisão da farmacoterapia, nem para usar as ferramentas para identificação de polifarmácia inapropriada. Não existem guias nacionais para isso. Recentemente, a sociedade de farmácia clinica colocou um guia sob consulta pública. Mas nenhuma ferramenta para auxiliar na identificação da prescrição inapropriada é traduzida culturalmente para o português. Não temos professores em todas as universidades com essa formação. Em outros países temos alguns já avançados nisso. Vale citar: Escócia, Inglaterra, Canadá e Austrália. Nos demais o processo é ainda semelhante ao Brasil”.
A Dra. Walkyria resume sua posição sobre a atual formação universitária:
“Os egressos dos cursos superiores de Farmácia estão cada vez mais bem preparados para prestar Atenção Farmacêutica e atuar na Farmácia Clínica, dentro de suas atribuições. As escolas de Farmácia contribuem para o preparo dos futuros profissionais, primeiramente, ao estimulá-los a serem éticos; depois, ao dotá-los das habilidades e competências necessárias à prática profissional e, finalmente, estimulando-os a adotarem a abordagem humanista no tratamento centrado no paciente. É claro que sempre há espaço para as escolas incrementarem seus currículos com disciplinas voltadas a suprir novas demandas clínicas exigidas deste profissional.
Mas não existe algum procedimento padronizado para facilitar a desprescrição?
“Sim. Chamamos de diretriz o guia que contém os algoritmos para a desprescrição e todas as recomendações de como fazê-lo e como monitorar. Mas o Brasil ainda não desenvolveu nenhuma diretriz. Isso é o que meu grupo está propondo ao Ministério da Saúde”.
Fonte: ABCFarma