Sincofarma SP

Universitários abusam de remédios tarja preta: compra clandestina é fácil

Universitários estão seguindo um caminho perigoso: o da automedicação

Compartilhe:

Facebook
LinkedIn
WhatsApp

Ansiedade, estresse, cansaço excessivo, falta de atenção. Para evitar que problemas como esses atrapalhem os estudos, alguns universitários estão seguindo um caminho perigoso: o da automedicação, usando remédios controlados, vendidos só com receita e indicados para tratar transtornos que não têm.

 

É o caso do Caio*, estudante de direito em uma universidade privada do Rio de Janeiro. Por indicação de um amigo, ele começou a tomar Ritalina (remédio usado para tratar o TDAH —transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, entre outras doenças) para driblar o cansaço e “ficar ligado” quando chega a época de provas ou precisa finalizar trabalhos. “Sei dos riscos, mas sem o remédio eu fico sem bateria para estudar, dificulta muito”, disse.

 

Mesmo sem receita, o estudante carioca diz que foi fácil comprar o medicamento tarja preta: “Meu amigo conhecia um colega que vendia sem prescrição”.

 

Leia também: Diabetes tipo 1 pode ter progressão freada por medicamento utilizado no tratamento de artrite

 

Realmente, adquirir esse tipo de remédio no mundo universitário foi uma tarefa simples até para a reportagem de VivaBem. Após conversar com alguns alunos da USP, que pediram para manter sua identidade em sigilo, ficamos sabendo da existência de uma conta comercial no WhatsApp chamada “USP Tarja Preta”, que vende remédios controlados sem receita.

 

O perfil promete entregar os medicamentos gratuitamente na Cidade Universitária da USP (Butantã), nas faculdades de Medicina e Saúde Pública da USP (ambas na Avenida Dr. Arnaldo) e na Universidade Mackenzie, todas em São Paulo. Em outros locais da cidade os produtos são envidados por aplicativos de entrega. Já em outros municípios e estado, o envio é feito pelo correio.

 

Entramos em contato com o vendedor, que disse ser estudante da USP, para tentar comprar um calmante que só é vendido com prescrição. A negociação foi simples e rápida (veja prints da conversa abaixo).

 

O medicamento chegou cerca de dez dias após o pedido. Combinamos a retirada na Cidade Universitária. Depois de receber o pagamento em dinheiro, o rapaz nos entregou o remédio (que está na foto de abertura desta reportagem) com a embalagem lacrada e aparentemente original, sem fazer qualquer pergunta.

 

 

Bruno Pascale Cammarota é médico psiquiatra pela Fundação Técnico Educacional Souza Marques e professor de farmacologia em cursos de medicina. Ele diz que a automedicação é perigosa (explicamos os risco mais abaixo), mas não é rara entre os universitários, que costumam consumir duas classes de remédios controlados:

 

“Os benzodiazepínicos, chamados calmantes, geralmente são buscados pelos jovens que estão iniciando a faculdade. Nessa fase, os estudantes ficam muito ansiosos, alguns estão em uma graduação em cursos integrais, como os de medicina, e precisam de uma adaptação, por isso recorrem a esses medicamentos.”

 

Segundo o especialista, à medida que o curso vai avançando e ficando mais exigente, o que requer maior dedicação dos alunos, eles passam a usar substâncias estimulantes, como a Ritalina, consumida por Caio.

 

 

Paulo*, estudante de química na USP, é outro que já recorreu aos remédios controlados vendidos clandestinamente.

 

Diagnosticado com ansiedade e depressão antes de entrar na universidade, ele faz tratamento com psicóloga e psiquiatra e usa o medicamento com acompanhamento de especialistas. Porém, quando ficou sem a receita, em vez de marcar uma consulta médica, buscou o remédio no “mercado paralelo”.

 

“Comprei recentemente e foi bem fácil, apenas tive que pagar um pouco mais do que o valor que estou acostumado. Eu tenho consciência de que a automedicação pode causar consequências nocivas à minha saúde, mas também sei que isso é um costume bastante normal entre os brasileiros”, afirmou o estudante.

 

Os perigos da automedicação

Não há números oficiais de quantos estudantes universitários se automedicam nem do número de remédios vendidos no mercado paralelo, sem prescrição médica. Mas a automedicação é um problema conhecido em nosso país.

 

Um estudo feito em 2022 pelo ICTQ (Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico) aponta que quase 90% dos brasileiros usam medicamentos sem orientação médica.

 

Sérgio Rocha, médico psiquiatra e especialista em dependência química pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), alerta que, além da possibilidade real de morte pelo uso excessivo, o consumo de medicamentos sem prescrição pode causar dependência.

 

Inúmeras vezes recebi pacientes que estavam se medicando por conta própria. Eles tinham desenvolvido uma relação de dependência com a droga, não apenas química propriamente dita, como também afetiva, não conseguindo mais funcionar minimamente sem o remédio
Sérgio Rocha, psiquiatra.

 

A automedicação —e isso vale para qualquer remédio que não seja isento de prescrição, e não só os tarjas pretas— ainda pode trazer problemas como:

 

  • Intoxicação
  • Efeitos colaterais
  • Descritos na bula
  • Mascaramento de doenças
  • Interações medicamentosas perigosas
  • Diagnóstico errado de doenças
  • Atraso na busca por uma doença (e no início de seu tratamento)
  • Agravamento de doenças
  • Lesões no fígado
  • Insuficiência renal
  • Sangramento no estômago e intestino

 

 

A psicanalista Elisandra Souza, especialista em psicanálise e linguagem pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), diz que é necessário haver diálogo entre pais, alunos e instituições de ensino para coibir a automedicação no meio universitário.

 

“É fundamental conscientizar sobre os riscos, incentivar os universitários a buscarem orientação médica e educá-los sobre o uso responsável de medicamentos.”

 

Remédio clandestino pode dar cadeia

Ao adquirir remédio sem prescrição e de procedência desconhecida, a pessoa corre o risco de levar para casa uma falsificação ou um medicamento fora do prazo de validade, o que também coloca em risco a saúde.

 

O advogado e educador da AC Advocacia Anderson Cruz explica que “a venda e a obtenção de medicamentos de uso controlado sem receita médica podem ser consideradas crime e até enquadradas como tráfico de drogas” (especialmente quem vende). Segundo ele, a pena pode variar entre cinco e 15 anos de prisão.

 

O advogado diz ainda que a Anvisa penaliza farmácias e drogarias que vendem medicamentos controlados sem receita médica. A multa aplicada pode variar de R$ 2 mil até R$ 1,5 milhão, passando pela interdição e até cancelamento de alvará do estabelecimento.

 

O farmacêutico que vende os medicamentos de uso controlado sem prescrição está sujeito a instauração do procedimento administrativo que pode culminar na cassação do registro no CFF (Conselho Regional de Farmácia).

 

O que diz a USP

A Universidade de São Paulo afirma não ter sido informada sobre nenhuma ocorrência de venda de remédios dentro de suas dependências.

 

Em nota, a assessoria de imprensa da universidade declarou que: “a venda de medicamentos sem prescrição é uma ilegalidade que deve ser enfrentada por outras instâncias estatais (civis, criminais). Do ponto de vista da universidade, para o enfrentamento pelo regime disciplinar administrativo é preciso que recebamos uma notícia formal dos fatos para que possam ser apurados, o que ainda não aconteceu. Mais uma vez, nos preocupamos e repudiamos a venda de medicamentos sem prescrição médica. Planejamos também realizar uma campanha de esclarecimento sobre os riscos envolvidos no uso de medicações psiquiátricas sem prescrição médica, voltada a toda a comunidade acadêmica”.

 

Universidades oferecem ajuda

A pandemia de covid-19 teve uma influência significativa na piora da saúde mental dos universitários brasileiros: 87% dos alunos com idade entre 18 a 21 anos afirmaram que houve aumento de estresse e ansiedade, segundo o estudo Global Student Survey 2021, da Chegg.org.

 

A pandemia triplicou o número de atendimentos, sobretudo entre os estudantes universitários, no qual observamos um crescimento relevante de casos de ansiedade e ataques de pânico
Bruno Cammarota, psiquiatra

 

Por causa disso, muitas universidades têm investido em ações para cuidar da saúde mental dos estudantes, com palestras, rodas de conversa, consultas psiquiátricas e psicológicas, terapias.

 

A USP, por exemplo, conta com o Programa Ecos (Escuta, Cuidado e Orientação em Saúde Mental), iniciativa que oferece acolhimento e orientação para as demandas de toda a comunidade. A escuta é conduzida por uma equipe especializada composta por dois psicólogos, três assistentes sociais e um enfermeiro.

 

*O nome dos personagens foi alterado a pedido dos entrevistados.

 

 

Foto: Reprodução
Fonte: Uol